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Jaqueline M. Souza

Filmes de Gêneros para Roteiristas: o que você precisa saber para começar a escrever um roteiro de g


Existem histórias de todos os tipos: as assustadoras, as emocionais, as de aventura. E desde que as histórias começaram a ser contadas, elas eram contadas assim, levando em conta o que narravam, mas também a sensação que despertavam em que as ouvia. A esses diferentes tipos de história o cinema costuma chamar de gênero. O uso da palavra gênero na literatura refere-se à categorização de obras de acordo com características análogas de estilo, a forma e conteúdo. Já na Grécia Antiga, Aristóteles, em a Arte Poética, definia os gêneros literários em Épico ( do qual são subgêneros os épicos, fábulas, epopeias, etc), Lírico ( a poesia, a elegia, a ode, etc) e o Dramático ( a comédia, a tragédia, etc). Mas os gêneros dialogam com seu tempo e foram sendo expandidos, se influenciando e se alterando.

"Assim, podemos afirmar que no contexto da cultura cinematográfica, existe igualmente uma extensa herança, seja do ponto de vista analítico e crítico (que procura identificar as características dos géneros, a sua delimitação, a sua evolução, as suas derivações, as suas hierarquias e, eventualmente, o seu desaparecimento) quer do ponto de vista criativo e cultural (na medida em que os gêneros tendem a instituir-se em modelos ou fórmulas artísticas facilmente reconhecíveis, partilháveis e imitáveis). Estando a delimitação e a caracterização dos gêneros sujeitas à constante mutação e hibridação dos mesmos, torna-se difícil atingir um consenso definitivo sobre os critérios e as fronteiras que permitem identificar e balizar cada gênero. No entanto, podemos afirmar, resumidamente, que um gênero cinematográfico é uma categoria ou tipo de filmes que congrega e descreve obras a partir de marcas de afinidade de diversa ordem, entre as quais as mais determinantes tendem a ser as narrativas ou as temáticas."- Gêneros Cinematográficos de Luis Nogueira

É verdade que o gênero está na base do cinema norte-americano e que por anos o cinema brasileiro relutou com os filmes de gênero, mas também é verdade que nosso cinema tem gêneros genuinamente nacionais (como a chanchada, por exemplo), tem diretores e roteiristas famosos por sua especialidade em filmes de gênero (impossível não citar Zé do Caixão e entre os novos nomes Juliana Rojas) e tem no topo da lista de maiores bilheterias do país, filmes de gênero. Então, que isso não sirva de desculpa para não nos aprofundarmos em um conceito tão cinematográfico.

Muitas vezes, nós temos a sensação de reconhecer intuitivamente o que é um gênero ou outro, mas para um roteirista, entender verdadeiramente os gêneros e subgêneros cinematográficos é um elemento fundamental na hora da escrita. Ao conhecer os componentes e convenções de cada gênero, um roteirista pode moldar sua ideia, ajudar no desenvolvimento de personagens e beats dentro da história, compreender sua narrativa pela perspectiva do público e mesmo jogar com as expectativas do espectador.

"Em todas as narrativas, o uso consciente dos gêneros cinematográficos é muito importante. Gêneros podem contribuir muito para a parte pesada da história. Como? Eles podem emoldurar e guiar a história. Cada um dos gêneros cinematográficos dará aos roteiristas ideias de tramas e arcos de personagens e construção de um mundo. Escolher os gêneros ajudará o roteirista a moldar personagens e pontos da trama, assim o desafio da página em branco pode parecer menos assustador – mais estruturalmente sólido – e portanto, mais prazeroso no que o processo de construção se desenrola. Entender as expectativas do público de cada um dos gêneros, seus desejos por experiências viscerais e intelectuais também ajuda. Parece simples? De certa maneira é sim, desde que você compreenda toda a base – o formato clássico e “novo clássico” de cada gênero cinematográfico – e aprenda a usá-los como alicerces enquanto criando as cenas e sequências da narrativa cinematográfica. O entendimento e implementação dos componentes do gênero é uma excelente adição as habilidades do roteirista. As convenções e proveniências históricas de cada gênero específico são importantes para o roteirista que intenciona levar as histórias cinematográficos para novos territórios." – Film Genre for the Screenwriter de Jule Selbo

O gênero é, então, a forma da história, uma macroestrutura que contém a estrutura geral do roteiro. Existe uma grande variedade de gêneros: musical, comédia, aventura, road movie, policial, ficção científica, etc (e não existe uma unanimidade dos autores quanto a todas as possibilidades de gêneros). Cada um deles tem suas próprias convenções, características dramáticas em comum diretamente ligadas às expectativas do público.

Quando você ouve falar que um filme é do gênero “ação”, que elementos ou situações vêem a sua cabeça que você espera encontrar nesse filme? E em um filme de terror que sensação ou sentimento você espera passar ao longo das 2 horas de sessão? Que temas você espera ver discutidos em filmes de western? Essas convenções de cada um dos gêneros atuam tanto nas características dos personagens e suas funções e na forma dramática, a estrutura.

Os elementos chaves de cada gênero, criando seu vocabulário próprio, envolvem para os roteiristas:

  • Os personagens;

  • Tramas, situações, questões e temas;

  • Locações e panos de fundo;

  • Adereços, símbolos, iconografia e significantes;

  • Música e sons

"Depois de um esboço de definição, precisamos de um conjunto de critérios para a identificação de um gênero. Se aplicarmos – como usualmente se faz – critérios de ordem essencialmente narrativa na categorização genérica das obras cinematográficas, podemos identificar aquilo que designamos por gêneros clássicos como o western, o drama, o musical, o terror, a ação ou o film noir, cujos elementos se manifestam recorrentemente e nos permitem um fácil reconhecimento das características da história (o que se conta) e do enredo (o modo como se conta): as situações e padrões narrativos, a tipologia e perfil das personagens, a morfologia e semiótica dos locais, os temas abordados, a época dos acontecimentos, a iconografia e a simbologia dos adereços e objetos, bem como opções estilísticas convencionais ao nível da música, da montagem ou da fotografia, são aspectos essenciais dessa caracterização. Falamos então de uma classificação estrita dos gêneros." -Gêneros Cinematográficos de Luis Nogueira

Apesar disso, filmes de um mesmo gênero podem ser completamente diferentes, por trazer distinções narrativas no tom utilizado, no estilo (e abordagem), pela interseção com outros gêneros ou pelo uso sintático ou semântico que compõe o gênero.

“Embora exista um acordo geral sobre a fronteira exata que separe a semântica das visões sintáticas, podemos, no seu conjunto, distinguir entre definições genéricas que dependem de uma lista de traços comuns, atitudes, personagens, planos, locais, conjuntos e similares - assim enfatizando os elementos semânticos que compõem o gênero - e as definições que representam, em vez disso, certas relações constitutivas entre marcadores de posição não designados e variáveis - que podem ser chamados de sintaxe fundamental do gênero. A abordagem semântica enfatiza os blocos de construção do gênero, enquanto a vista sintática privilegia as estruturas nas quais estão dispostas” - A Semantic/Syntactic Approach to Film Genre de Rick Altman

Resumidamente, alguns filmes são de um determinado gênero por trazer elementos comuns a esse gênero. Por exemplo, As loucas aventuras de James West tem um personagem comum ao gênero, um pistoleiro, em um local comum ao gênero, o velho oeste americano, com cenários comuns ao gênero, o região de divisa, árida e seca. Por isso, o filme pode ser considerado também um western (na realidade é um híbrido já que mistura o gênero do western com a comédia). Banzé do Oeste também é hibrido, mas que no lugar do screwball comedy ( algo como comédia maluca), leva a paródia e a sátira para o western. Mas, conceitualmente o western vai além de homens armados em um cenário árido. O que mais então seria necessário para definir um gênero?

“Na verdade, seria vão o esforço de reduzir a essência do western a qualquer um de seus componentes manifestos. Os mesmos elementos são encontrados em outras partes, mas não os privilégios que não a forma. As cavalgadas, as brigas, homens fortes e corajosos numa paisagem de uma austeridade selvagem não poderiam ser suficientes para definir ou resumir o charme do gênero. Tais atributos formais, pelos quais o western comumente é reconhecido, são apenas os signos e símbolos de sua realidade profunda, que é o mito. O western surgiu do encontro da mitologia com um meio de expressão: a Saga do Oeste existia antes do cinema nas formas literárias e folclóricas [...].” - O western ou o Cinema Americano por Excelência de Andre Bazin

O trecho acima, presente na coletânea O Que é o Cinema? fala sobre o western, mas poderíamos fazer a mesma relação com qualquer outro gênero. O gênero é mais do que iconografia, uma lista de referências imagéticas a serem cumpridas, ele é também o que se conta e como se conta. Essa compreensão conceitual dos gêneros é essencial para a escrita de filmes de gêneros. John G. Cawelti, autor e estudioso dos gêneros de detetive e western, localiza o western como “sempre ligado ou perto de uma fronteira, onde o homem encontra seu duplo incivilizado. O Western, portanto, ocorre na fronteira entre duas terras, entre duas eras, e com um herói que permanece dividido entre dois sistemas de valores (pois ele combina a moral da cidade com as habilidades dos fora da lei)”. Essa leitura sintática, entende as relações estabelecidas entre os elementos da trama como parte fundamental dos gêneros. E é isso que permite que um filme como Fargo, passado em uma região gélida e sem muitas das referências visuais do gênero, mas com uma trama de divisa entre dois mundos e com uma personagem procurando foras da lei, seja considerado por muitos um western. O mesmo acontece com Wild River.

Outro exemplo de como o gênero vai além da presença de personagens e iconografias estanques são os monstros. Figuras recorrentes nos filmes de terror, eles também podem estar presentes em outros tipos de história, sendo a diferença principal a relação estabelecida entre os personagens.

"No entanto, ainda que se possa sustentar que um monstro ou uma entidade monstruosa seja uma condição necessária do horror, tal critério não seria uma condição suficiente. Ha monstros em todo tipo de histórias- como contos de fadas, mitos e odisseias- que não estamos propensos a identificar como horror. Se quisermos explorar de modo proveitoso a sugestão de que monstros são centrais no horror, teremos de encontrar uma maneira de distinguir a história de monstros das meras histórias com monstros, como os contos de fadas. O que parece servir de demarcação entre as histórias de horror e meras histórias com monstros, tais como os mitos, é a atitude dos personagens da história em relação aos monstros que deparam. Nas obras de horror, os humanos encaram os monstros que encontram como anormais, como pertubações da ordem natural. Nos contos de fadas, por outro lado, os monstros parecem fazem parte do mobiliário cotidiano do universo." A Filosofia do Horror de Noel Carrol

Então, ao lado das questões iconográficas que podem ser trazidas para cena, deve-se pensar na relação dos personagens/elementos entre si e nos papeis que desempenham dentro da trama e nas conflitos desenvolvidos. Jule Selbo faz um breve apanhado nas promessas de conflitos dos gêneros e que afetos eles despertam no público:

“Um gênero promete uma jornada que o espectador/leitor do roteiro quer experienciar. Comédias exploram o irônico ou o bobo ou o satírico ou as fragilidades cômicas da condição humana e promete despertar risos. Dramas examinam seriamente a condição humana do homem comum e da mulher comum. O gênero de terror promete tramas onde forças ou personagens malignos incomodam a ordem do mundo; o público quer ser convencidos que abaixo da superfície da normalidade há um mundo de perigo e malevolência que pode ser perversamente destrutivo se libertado. Eles querem gritar, sentir ansiedade, se contorcer e experimentar altas doses de adrenalina liberadas pelo medo. O gênero Western clássico promete um olhar para o passado (Estados Unidos entre a Guerra Civil e 1990) e para uma nação e grupo de personagens que estão lutando, na maioria dos casos, por justiça e/ou um senso de liberdade pessoal em espaços selvagens abertos. Romances prometem examinar a veracidade, força e/ou propósito de de fortes conexões amorosas – há expectativas do público de empatia e simpatia, um convite para chorar por um amor frustrado. O gênero do desastre promete examinar reações humanas perante grandes destruições e possível aniquilação. O gênero de aventura promete apresentar um objetivo aparentemente impossível e personagens que vão aceitar o desafia de alcança-lo. Cada um desses gêneros cinematográficos e outros gêneros clássicos prometem (para o público) uma certa experiência. Se a história não entrega, o público desapontado se sente irritado, angustiado e as vezes até raiva. Isso é muita pressão para o “gênero”, uma palavra de origem Francesa que antes denotava simplesmente “tipo” ou “categoria”, mas que agora tomou um lugar muito mais importante no léxico da narrativa cinematográfica” – Film Genre for the Screenwriter de Jule Selbo

Mas, os gêneros mudam. Seja por questões sociais de cada era, seja por novas tendências lançadas por filmes de sucesso, seja por estarem na moda no momento ou não. Gêneros são estruturas orgânicas que dialogam com o seu tempo e que pode mudar suas convenções, suas características e até sua presença no imaginário popular.

"A onda recente de filmes bem-sucedidos de horror fala com uma sociedade que sofre sentimentos de vulnerabilidade, medo e pavor constantes, desamparo, paralisia, frustração e raiva. Como todos os gêneros, o horror entra e sai da moda. Agora está na moda. E, como todos os gêneros, o horror reescreve suas convenções em reação às mudanças de atitudes e valores da sociedade." The Pleasures of Horror de Mckee Story

Quando bem compreendidos, os gêneros podem ser manipulados, deslocados, desconstruídos, mixados para revelar novas formas e roupagens. A união de gêneros distintos pode ter resultados surpreendentes. Blade Runner misturou a ficção científica com o film noir e criou um clássico cult. Pânico misturou o horror com a paródia ( no sentido estrito do gênero) e reinventou o terror, então em baixa nos anos 90. Corra! mistura o horror com a sátira para levantar discussões sobre o racismo e a apropriação cultural. Já o deslocamento de um simples elemento pode mudar completamente a trama e trazer frescor ao gênero. Alien seria mais um filme Monster in the House (classificação utilizada pelo Blake Snyder para um tipo de filme de horror), se não fosse deslocado para o espaço, o que por si só aumenta a angústia do espectador já que fugir no espaço não é algo viável. O Casamento do Meu Melhor Amigo ilustra que até um dos gêneros mais imutáveis do cinema, a comédia romântica, pode ser subvertido, adeus personagens caricatos, olá anti-heroína romântica. Todo Mundo Quase Morto trouxe novos ares ao propor uma comédia de ação, ambientado em um apocalipse zumbi. A lista poderia ser infindável.

A melhor maneira de entender os gênero é estudá-los e escrevê-los. Leia alguns livros sobre o gênero que deseje trabalhar, assim como assista filmes dentro de seu gênero específico e subconjunto de gênero. Anote o que eles tem em comum, o que eles tem de diferente, faça breakdown estudando a estrutura. Essa capacidade de conseguir identificar os elementos e temas de cada gênero será eficaz na hora de escrever, trazendo tons, atmosferas e abordagens que vão além do clichê e chegam na gênese dos grandes gêneros. Isso também ajudará a entender o que já foi feito, criando ideias mais originais, além de permitir subverter o gênero, quebrando as convenções ou misturando gêneros de forma nova e surpreendente.

Boa escrita!

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