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  • Marcos Hinke

A dramaticidade através do diálogo: algumas possibilidades


Vamos falar sobre o ato de falar. Dar voz a personagens que aparentam agir de forma orgânica e avançam uma história e ainda invisibilizar a voz de quem escreve, é uma tarefa árdua e confusa.

Na superfície, podemos definir diálogo como palavras ditas por qualquer personagem, para qualquer pessoa. Porém, por mais que diálogos ficcionais se assemelham a conversas reais, sua mecânica é cuidadosamente desenhada, com camadas e estrutura.

São extensos os problemas que podemos apontar quando notamos que os diálogos não aparentam funcionar em roteiros:

  • Personagens que apenas falam ininterruptamente, sem qualquer objetivo, apenas porque a cena exige algum tipo de interação verbal.

  • Voz genérica de personagens, com frases que poderiam ser ditas por qualquer pessoa em qualquer situação. Alguns roteiros fazem o uso de gírias para tentar forçar uma personalidade inexistente nos personagens e acabam caindo em estereótipos.

  • Exposição descontrolada (tanto exposição em excesso quanto exposição escassa).

  • Amostras conscientes de emoção, ou seja, roteiros que confundem a construção do impacto emocional com os personagens verbalizando o que estão sentindo.

  • Repetições que não trazem nenhum elemento novo para a história, como por exemplo, personagens contando a mesma história diversas vezes, sem qualquer alteração, apenas para reiterar pontos importantes.

  • Esforço excessivo de tentar soar natural na crença que isso trás complexidade.

Esse texto não tem a pretensão de apresentar soluções para os problemas listados acima. Mesmo os maiores teóricos e roteristas não tem uma soluções mágicas. O objetivo aqui é nos conscientizarmos sobre alguns problemas comuns e algumas possíveis opções de abordagem. E como o estilo de cada roterista também pode ser enriquecido com essas novas possibilidades. A palavra "algumas" será constantemente repetida nesse texto, pois as possibilidades são inúmeras, e imposição de delimitação seria limitadora aqui.

ALGUNS PROPÓSITOS DOS DIÁLOGOS

Há um axioma que crê que toda linha de diálogo deve estar no roteiro para um objetivo específico, e se não tem um propósito, pode ser cortada fora. É uma informação útil, mas que pode ser capciosa se não for refletida com cautela. Uma interpretação mais literal pode entender isso como uma forma apenas de condensar as falas, onde os personagens só precisam dizer o que é importante para a história e nada mais, resultando em cenas vazias e sem desenvolvimento. Outro perigo é que , se tudo é essencial, cada linha de diálogo será evidente demais, explicitando a função do diálogo e limitando sua dramaticidade e surpresa.

Ao invés de focar no que é útil e o que não é, podemos refletir sobre as funções essenciais dos diálogos e como os encaixes dessas funções podem proporcionar múltiplas utilidades para cada linha de fala dos personagens.

Assim como uma trama não pode ser definida apenas como uma sucessão de eventos, diálogos dramáticos não se caracterizam apenas por "pessoas falando". Diálogos dramáticos são falas ditas por personagens inseridos em um contexto dramático e que precisam falar (ou omitir) o que for preciso para conseguirem o que querem.

No livro "Diálogo: A arte da ação verbal na página, no palco e na tela", Robert Mckee aponta duas abordagens para o diálogo: Diálogo Dramatizado e Diálogo Narrado.

"O Diálogo dramatizado ocorre dentro de cenas. Seja com tom cômico ou trágico, o diálogo dramatizado é a troca de falas entre personagens em conflito. Cada fala contém uma ação com uma intenção específica e causa uma reação em algum momento dentro da cena.

[...]

O Diálogo narrado acontece fora da cena. Nesses casos, a chamada quarta parede do realismo desaparece e uma personagem deixa de lado as dramatizações da história. [...] Personagens da tela fazem o diálogo narrado em uma de duas maneiras: em voice over sobre as imagens ou direto para a câmera em solilóquio cinematográfico."

- Robert Mckee - Diálogo: A arte da ação verbal na página, no palco e na tela

Segundo Mckee, o que difere as duas categorias de diálogo são suas localizações, dentro ou fora da cena, e o ato de dramatização das falas.

É importante salientar que o Diálogo Narrado não se limita a ser meramente informativo por deixar as dramatizações de lado. Como toda técnica, se bem dominada, ela pode ter um valor narrativo e dramático por si só (mais sobre isso no texto Voice Over: o domínio da técnica mais execrada dos roteiros).

Mckee ainda categoriza três funções essenciais do diálogo: Exposição, Caracterização e Ação. Apesar das inúmeras funções do diálogo, focaremos nas três sugeridas.

DIÁLOGO COMO EXPOSIÇÃO

"Exposição é o termo que nomeia fatos ficcionais de ambientação, de história e de personagem que o leitor e o espectador precisam absorver em algum momento para entender o desenrolar da história e se envolver com ela"

Robert Mckee - Diálogo: A arte da ação verbal na página, no palco e na tela

Já falamos muito sobre exposição aqui na Tertúlia. E se tratando de exposição através de diálogos, é fácil torcermos o nariz e pensarmos naqueles momento que o vilão captura o protagonista e decide explicar todo o seu plano antes da execução. Ou momentos em que dois personagens contam um ao outro informações que já sabem, mas que são importantes para o público. Costumamos chamar de exposição, justamente essas exposições forçadas e explicitas, sendo que as melhores exposições são justamente as mais invisíveis aos olhos do público. Então é importante percebermos que exposição forçada não é a mesma coisa que exposição.

Analisando especificamente diálogos podemos encontrar técnicas que ajudam a invisibilizar a exposição através do contexto onde os personagens estão inseridos e nas relações estabelecidas pela história. Abaixo, algumas dessas técnicas.

QUANTO INFORMAR E QUANDO INFORMAR

A administração da informação é fundamental para manter o fluxo narrativo. Afinal, o público precisa estar ciente do que é importante para seguir acompanhando a história. Ao mesmo tempo, se soubermos demais, dificilmente ficaremos interessados em saber o que acontece em seguida.

Exposição em diálogos funciona melhor se for apresentada em pequenas doses e que seja inserida de forma natural no diálogo. Frases como "como você sabe" denunciam o objetivo do diálogo de informar o público, técnicas como colocar um desconhecido da situação em cena, ajudam a invisibilizar a informação. Outra forma de encarar a transmissão de informações é deixar um personagem falar um pouco sobre um assunto e ser interrompido, entregando para o público uma pequena dose de informação e deixando suas expectativas trabalharem para preencher as lacunas.

O thriller dinamarquês "Culpa" utiliza muito bem a administração da exposição para criar tensões e reviravoltas. O filme todo se passa em uma central de chamadas de emergência e é 100% verborrágico. A trama acompanha Asger Holm correndo contra o tempo e quebrando protocolos na tentativa de solucionar uma chamada que atendeu. É justamente o que aos poucos vamos aprendendo sobre Asger e o caso que ele acompanha (e interfere) que torna o filme tão intrigante e acelerado, mesmo imageticamente tendo um personagem que está apenas sentado em uma cadeira e falando ao telefone por quase todo o filme.

O filme é um excelente estudo de personagem aliado a trama. Torcemos pelo personagem sem conhecê-lo completamente, e o controle das informações é calculado para que possamos conhecer algumas nuances de Asger e seu passado, mas também sempre nos deixando intrigados para querer saber mais.

O protagonista está fortemente limitado espacialmente e hierarquicamente, não podendo agir como bem entende. Já que falar ao telefone é a única ação permitida para o protagonista, constantes forças opositoras são colocadas do outro lado da linha para criar conflito, mas elas também abrem o caminho para uma exposição orgânica. Como por exemplo, no momento que Asger tenta pedir ajuda a seu chefe, mas é constante interrompido, sendo convidado a se lembrar porque ele não deve agir da forma como está agindo. O "ser convidado a lembrar" é diferente de "ser lembrado", evitando assim que o chefe verbalize informações que o protagonista já sabe, mas levantando dúvidas para o público.

ADICIONE EMOÇÃO A EQUAÇÃO

Uma experiência emocional permite mais possibilidades e conexão na hora de transmitir informações. Por exemplo, uma exposição forçada pode soar mais natural em um momento de alta intensidade, como quando dois personagens estão brigando. Com o sangue fervendo, todas as máscaras caem e os diálogos expositivos são usados como armas.

A série "Seven Seconds" é um dos melhores exemplos contemporâneos que trabalha com maestria a dramaticidade através de diálogos. Carregada de diálogos, a série conta com um grande grupo de personagens complexos que precisam lidar com seus demônios internos após um trágico incidente.

A cena a seguir apresenta alguns traços da Caracterização (mais sobre isso mais pra frente) de Isaiah, o patriarca da família Butler, com duas falas curtas e com sua incapacidade de dizer o que importa:

Obs. Trecho transcrito do episódio 2 - "Brenton's Breath". O roteiro original não foi disponibilizado online.

Isaiah é um homem preso a antigos valores de masculinidade. Incapaz de verbalizar seu amor pelo filho que está a beira da morte, demonstra seu afeto da única forma que sabe: trabalhando para prover para sua família. Sua visão ultrapassada o faz pedir para Latrice, sua esposa, pedir licença no trabalho para que ele possa cumprir sua "função de homem" e trabalhar em turno duplo para conseguir pagar as contas do hospital, enquanto Latrice possa cumprir sua "função de mulher" (na visão de Isaiah) e efetivamente zelar pelo filho.

Alguns episódios depois, uma briga entre Isaiah e seu irmão permite um momento de honestidades brutais que trazem para o texto todo o subtexto que foi construído até então:

Obs. Trecho transcrito do episódio 4 - "That What Follows". O roteiro original não foi disponibilizado online.

Tudo que foi sutilmente plantado na cena do episódio 2, vem a tona nessa cena graças a intensidade emocional estabelecida. Toda a construção da relação turbulenta entre Isaiah e Seth convergem nessa cena. Isaiah conscientemente defende os valores que sempre acreditou ter e Seth tem a chance de jogar na cara de Isaiah o homem que ele realmente é, e como ele nunca se importou de verdade com sua família.

Da mesma forma que podemos pensar o "conflito" como uma maneira de impulsionar a história, diálogos também precisam de seus propulsores para estabelecer uma conversa ou monólogo intrigante, que não seja só uma repetição e caminhos circulares. Ou seja, certos diálogos precisam de uma motivação lógica para existir.Em uma narrativa clássica, os personagens estão inseridos dentro de um contexto dramático e o peso de suas escolhas de palavras ganham definição e força quando analisados em conjunto com as situações que estão passando.

Em Master Screenplay Dialogue, Alex Bloom sugere algumas dicas para evitar diálogos "na cara". Uma delas é o que ele chama de "O teste do ponto de interrogação".

"O teste do ponto de interrogação. Pressione Control/Cmd + F no teclado, insira um símbolo de ponto de interrogação no campo de pesquisa e pressione Enter. Isso traz à tona todas as conversas que consistem em um personagem perguntando a outra uma tonelada de perguntas? Se sim, a menos que você está escrevendo uma cena de tribunal, há uma forte chance de você ter encontrado alguns diálogos "na cara". " - Alex Bloom em "Master Screenplay Dialogue"

A dica é simples e eficaz. Em uma situação cotidiana, se um personagem age como inquisidor, empurrando uma dezena de perguntas, provavelmente a construção desses diálogos pode ser melhor explorada. Mas, observemos que criado o ambiente dramático para que uma sucessão de perguntas seja disparada, o próprio ato de perguntar pode ser pertinente e utilizado dramaticamente.

A cena do interrogatório em "O Mestre" ocupa quase 13 páginas no roteiro de Paul Thomas Anderson se utilizando apenas de dois homens sentados frente a frente com Lancaster Dodd conduzindo um questionário sobre o passado de Freddie Quell. Poderia ser uma cena direta, onde Quell fala tudo que o público precisa saber sobre seu passado, mas isso não condiz com os personagens e, convenhamos, não seria muito dramático. Quell é um mentiroso e um sobrevivente, e Dodd é um manipulador egocêntrico que sente prazer em "transformar" as pessoas. Essas duas personalidades ao mesmo tempo similares e opostas, precisam de elementos mais fortes do que uma troca cordial de informações para conseguirem o que querem. E são as escolhas da forma como Dodd decide apresentar suas perguntas que fazem dessa cena um dos momentos mais intensos em um filme carregado de cenas intensas. Apenas dois homens conversando, sentados frente a frente enquanto um deles expõe seu passado.

Em Fleabag, a protagonista já quase no final do episódio piloto está voltando para casa em um taxi, depois do que parece ter sido um dia repleto de derrotas. Aquela conversa jogada fora cotidiana e que todos sabemos como é, seja em taxi ou em um Uber. Phoebe Waller-Bridge utiliza o small talk com o motorista para fazer a exposição sobre a relação da protagonista com sua melhor amiga de uma forma completamente natural e dentro do estilo de diálogos da série. A história triste e cômica soa exatamente com aquele tom de desconforto quando informação demais é dada para um estranho que não esperava uma resposta tão precisa para uma pergunta banal.

DIÁLOGO COMO CARACTERIZAÇÃO

"A segunda função do diálogo é a criação e a expressão de características específicas para cada personagem do elenco.

A natureza humana pode ser dividida, para fins práticos, em dois grandes aspectos: aparência (o que a pessoa parece ser) e realidade (o que a pessoa realmente é). Escritores, portanto, desenham personagens ao redor de duas partes correspondentes conhecidas como o caráter verdadeiro e a caracterização."

- Robert Mckee - Diálogo: A arte da ação verbal na página, no palco e na tela

Da mesma forma que Mckee define diálogos como direto e indireto, o processo de caracterização também pode ser categorizado nessas duas maneiras (mais sobre isso, com exemplos práticos, em "Caracterização de personagem na prática: casos de estudo").

Quando Mckee menciona caráter verdadeiro e caracterização, ele define o primeiro como um conjunto de características profundas, cuja a verdade só vêm a tona em momentos de pressão, quando a personagem é obrigada a fazer escolhas. Isso é um dos pilares do conflito, que tira a personagem de sua zona de conforto, forçando-a a mostrar suas verdades morais e psicológicas para resolver o que precisa ser resolvido.

Já caracterização engloba todos os aspectos visíveis na superfície das personagens, como seus traços e comportamentos são percebidos comumente, criando particularidades e curiosidades a respeito da personagem.

Ricky Blaine, de Casablanca, é caracterizado como um homem rude, egoísta e amargo. Falas como "Não me arrisco por ninguém", "sou um bêbado" e suas constantes manifestações de desprezo por si e pelos outros compõem sua aparência superficial. Mas no momento em que ele precisa fazer uma escolha, em que ele tem a opção de conseguir o que sempre acreditou que queria, ele opta pelo bem maior, se arriscando pelos outros e se sacrificando, revelando seu caráter verdadeiro.

O belíssimo "Oitava Série" utiliza humor e contradições para constantemente caracterizar a protagonista. Seu brilhante monólogo inicial brinca com a caracterização, abrindo caminho para os conflitos que irão revelar o caráter verdadeiro de Kayla.

É interessante observar que o uso de interjeições como "hmm" e "tipo" não estão inseridas apenas para forçar um diálogo "naturalista" (outro problema apontado no começo do texto), mas para demonstrar o nervosismo de uma adolescente que está aconselhando sobre "ser você mesma". Mas no decorrer do monólogo, sem perceber, Kayla admite que está lendo um roteiro para falar sobre identidade. Em poucas linhas, já temos uma pincelada de características de Kayla, estabelecido seu estado psicológico, assim como a jornada de auto descoberta que irá percorrer.

No outro lado do espectro de personagens que escondem quem realmente são, podemos encontrar Inácio, um dos protagonistas de "O Animal Cordial". Gabriela Amaral dedica quase todo o primeiro ato para estabelecer as frágeis relações de pequenos poderes entre os personagens enclausurados em um ambiente (patrão vs funcionários, funcionários vs funcionários, funcionários vs clientes, patrão vs clientes, etc.), e quase tudo através de diálogos (e alguns monólogos). No meio dessas relações, temos Inácio, o patrão, uma bomba relógio prestes a explodir. Para cada grupo de pessoas dentro de seu restaurante, Inácio assume uma voz distinta, um jogo de caracterizações onde ele tenta esconder seu caráter verdadeiro. Na frente do espelho, ele ensaia um monólogo onde se gaba de "seus" feitos, e ensaia trejeitos e maneirismos nas falas. Ele não sabe dialogar com seus funcionários a não ser demonstrando quem é que manda, dando ordens diretas e insistindo que eles se coloquem em seus lugares. Um poder que não se estende em sua voz com seus clientes prepotentes. Ao ser questionado de forma grosseira por um consumidor sobre seus conhecimentos sobre vinho, Inácio precisa forçar uma cordialidade e assumir uma nova forma de falar, se colocando abaixo desse cliente. Mas quando uma situação limite altera as ordens de poder, esse homem "do meio", o pequeno tirano oprimido, é agora o homem com a arma. O detentor de todo o poder dentro de um microcosmo onde as regras são estabelecidas por ele. O seu caráter verdadeiro nos atinge com os dois pé no peito, não há mais nada que o prenda aquele jogo de caracterizações que ele sempre jogou, redefinindo a voz de todos ao seu redor.

DIÁLOGO COMO AÇÃO

"A terceira função essencial do diálogo é equipar personagens com os meios para agir." Robert Mckee - Diálogo: A arte da ação verbal na página, no palco e na tela

Não é raro encontrar roteiristas e cinéfilos que acreditam que o "mostre, não conte" possui uma conotação literal. Diálogo, se trabalhado no contexto apropriado, também é ação (ou melhor, ação dramática), ou seja, também pode ser usado na função de mostrar através de palavras calculadamente construídas em relação a outros elementos da história.

No mundo ideal, diálogos mostram para o público os desejos e sentimentos dos personagens, em vez de contá-los. O espectador, de alguma forma, precisa sentir aspectos da situação que o personagem está passando através de suas falas e de sua interações com outros personagens. Podemos descobrir através dos diálogos a natureza dessas relações e o que um personagem quer do outro, ou suas dificuldades em revelar aspectos de si mesmo. Portanto, diálogos podem conter os objetivos e motivações das personagens, e aspectos que as tornam únicas.

A ação de falar não é o mesmo que a ação através da fala, isso seria uma forma muito genérica de pensar. Mas se pensarmos que a participação em uma conversa, tanto real quanto ficcional, envolve atos conscientes e inconscientes, instintos de preservação (aquilo que não é dito ou é dito de uma forma que o personagem não se exponha) e de expressão de vontades, podemos refletir de forma mais focada aquela dica abrangente de que cada linha de diálogo deve carregar uma função. A escolha de falar ou não, e mesmo o que ou como se fala torna-se um ato em si.

"Um dos problemas que comumente confunde roteiristas iniciantes é em relação a diálogos e direção de palco. Nós sugerimos que esse problema é superficial, porque diálogo e direção de palco devem funcionar da mesma maneira: como AÇÃO DRAMÁTICA. Isso quer dizer, cada linha de diálogo, como cada movimento, deve partir de alguma necessidade que não pode ser expressa de nenhuma outra forma. Diálogo se torna movimento, se torna um ato expressivo. O conteúdo das palavras é menos importante do que a necessidade de se falar."

Alternative Screenwriting - Ken Dancyger e Jeff Rush

Obs. Trecho transcrito do episódio 10 "Marco" da primeira temporada de Better Call Saul. O roteiro original não foi disponibilizado online.

Essa cena é um ponto chave na transformação de Jimmy e no jogo de caracterização que a série conduz tão bem.

Ação, caracterização e exposição trabalham em conjunto nessa pequena troca de diálogos. Jimmy poderia ir direto ao assunto, mas a cena se beneficia com suas divagações sobre seu arrependimento, contribuindo para a caracterização de Jimmy. Mike também tem espaço para aprimorar sua caracterização através de suas escolhas morais, e agora temos alguma pincelada curiosa sobre o que Jimmy pode fazer em seguida, depois de dar sua meia volta.

No decorrer da história, Jimmy se esforçou muito para se tornar uma pessoa melhor e enterrar Saul Goodman, seu "alter ego", porém, ele descobre que seu irmão, justamente a pessoa que ele mais queria se provar honesto e, não apenas desconfia dele, como não mede esforços para que ele não cresça profissionalmente. Na cabeça de Jimmy, seus sacrifícios foram em vão.

Jimmy usa Mike como seu interlocutor para expressar em voz alta indagações que estavam lhe corroendo e que ele precisava expor. Como apontado por Ken Dancyger e Jeff Rush em Alternative Scriptwriting, o conteúdo das palavras é menos importante do que a necessidade de falar. A ação do diálogo aqui parte dessa necessidade de reflexão verbal, Jimmy precisava tirar de seu peito que fazer a coisa certa não lhe rendeu as recompensas que esperava, que só o fez retornar a estágios anteriores de sua vida, ele não apenas fala o que sente, mas ele sente ao falar. Apesar de sua necessidade de exposição, a sutileza e o subtexto são chaves nesse momento. A ação física trabalha em conjunto com a ação do diálogo, conseguimos sentir as dúvidas morais e a raiva de Jimmy quando ele reflete se deve ou não entrar no tribunal, e quando acelera seu carro para sair do estacionamento.

É importante dar atenção ao que suas personagens precisam dizer e o peso que as escolhas de suas palavras podem carregar. Isso coloca seu personagem em uma posição mais ativa. As falas não expressam apenas o que é necessário para a história, elas reforçam sua tridimensionalidade.

Há muitos outros elementos importantes para serem discutidos em diálogos, como a dinâmica entre os personagens ou a condensação do tempo em um ritmo fílmico, já que na vida real damos muitas voltas para chegar (ou não) em uma conclusão simples, um ritmo que não se aplica muito a obras ficcionais. Mas refletir sobre a base dos personagens e como isso influencia suas maneiras de interação com o mundo, pode ser uma porta de entrada para começarmos a desmistificar esse bicho de sete cabeças que é o ato de escrever diálogos.

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