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  • Jaqueline M. Souza e Marcos Hinke

Caracterização de personagem na prática: casos de estudo


“Caracterização é a soma de todas as qualidades observáveis de um ser humano, tudo o que pode ser descoberto através de um escrutínio cuidadoso: idade e QI; sexo e sexualidade; escolhas de casa, carro e vestido; educação e trabalho; personalidade e nervosismo; valores e atitudes — todos os aspectos da humanidade que podem ser conhecidos quando tomamos notas sobre alguém todo dia. A totalidade desses traços faz uma pessoa única porque cada um de nós é uma combinação única de genes recebidos e experiência acumulada. Esse amontoado singular de traços é a caracterização, mas não a personagem.”

- Story, Robert Mckee

Caracterização é uma dessas técnicas que a dramaturgia herdou da literatura e por isso mesmo, talvez seja tão esquecida nos estudos de roteiro.

A caracterização se refere ao processo de introduzir, descrever e revelar um personagem. Quando falamos em personagens esféricos pensamos em três dimensões, uma física, uma sociológica e uma psicológica. Muita coisa faz parte da caracterização de um personagem, sua etnia, sua idade, seu porte físico, sua altura, como se veste, como fala, como pensa, como age. Mas sem dúvida, o caráter mais importante da caracterização é revelar a personalidade e o psicológico de um personagem.

“"Ser alto, baixo, gordo, magro, careca ou selvagem é apenas uma característica que não revela mais da vida interior do personagem do que a cor de um carro revela o poder de seu motor. O ingrediente essencial que essas características carecem é a atitude do personagem em relação ao atributo. Um personagem pode ser descrito como tendo um nariz grande , e não nos diz nada de sua vida interior. Mas em Cyrano de Bergerac, o enorme nariz do protagonista faz parte de sua caracterização pela simples razão de que é crucial para sua atitude em relação a si mesmo. O nariz dele é a fonte de seu senso de inferioridade e de seu senso de superioridade; é uma força motriz por trás do que tem o destacado, e por trás de seus medos.[...] Esta é a essência da caracterização, a revelação da vida interior do personagem. Suas ações, que são baseadas em seus desejos ou objetivos, conduzem nossa compreensão da vida interior personagens."

-Teoria e Prática do Roteiro , David Howard e Edward Mabley

Na literatura, tem-se muito bem definida duas formas de caracterização: a direta e a indireta. A caracterização direta é quando alguém verbaliza as características do personagem, às vezes ele próprio, às vezes um outro personagem e no caso da literatura, o caso mais comum, quando o narrador faz a caracterização através de adjetivos e indicação de traços.

“Mr. Bennet era um misto tão curioso de vivacidade, humor sarcástico, reserva e capricho, que a experiência de 23 anos tinha sido insuficiente para que a sua esposa lhe conhecesse o caráter. O espírito de sua mulher era menos difícil de compreender; tratava-se de uma senhora dotada de inteligência medíocre, pouca cultura e gênio instável. Quando se aborrecia imaginava que estava nervosa. A única preocupação da sua vida era casar as filhas”

-Orgulho e Preconceito, Jane Austen

Em A Hora da Estrela, o narrador Rodrigo S.M. descreve sua protagonista, Macabéa, mas não a descreve apenas fisicamente- com seus ombros curvos- mas também psicologicamente. Ele nos conta que ela é infeliz, sua ignorância sobre a própria felicidade e sobre sua capacidade de acreditar.

“A moça tinha ombros curvos como os de uma cerzideira. Aprendera em pequena a cerzir. Ela se realizaria muito mais se se desse ao delicado labor de restaurar fios, quem sabe se de seda. Ou de luxo: cetim bem brilhoso, um beijo de almas. Cerzideirinha mosquito. Carregar em costas de formiga um grão de açúcar. Ela era de leve como uma idiota, só que não o era. Não sabia que era infeliz. É porque ela acredita. Em quê? Em vós, mas não é preciso acreditar em alguém ou em alguma coisa – basta acreditar. Isso lhe dava às vezes estado de graça. Nunca perdera a fé.”

- A Hora da Estrela, Clarice Lispector

O narrador não cria cenas para mostrar como Macabéa é infeliz, ele simplesmente diz que ela era infeliz. A abordagem pode ser floreada e até poetizada, mas a intenção é clara, caracterizar de forma direta a personagem. Esse uso parece excessivamente literário, mas também pode ser utilizado no cinema.

No cinema não costuma ser muito eficaz a abordagem de caracterização direta, pois como estamos lidando com a dramaticidade encenada o artifício da verbalização sobre os personagens pode soar pesado e falso. Mas não é impossível.

A utilização mais óbvia seria uma Narração Voice Over que descreve o personagem e seus pensamentos e eu sei, parece uma ideia horrível, mas para provar que até essa possibilidade pode ser utilizada com 1) Elegância- recomendo assistir Os Excêntricos Tenenbaums e 2) Humor - é impossível não citar Arrested Development.

Mas a utilização mais recorrente no cinema da caracterização direta é a feita diegeticamente, por um personagem em cena. Muitas vezes, ela é feita pelo próprio personagem, porém para que não soe artificial ela precisa ser feita com um contexto que justifique e naturalize a situação.

A série Insecure (HBO, 2016) começa com Issa, uma jovem que trabalha em uma instituição de assistência social, apresentando o programa da instituição para alunos adolescentes de uma sala de aula. Ela se apresenta como Conselheira deles no programa e abre espaço para perguntas. Para surpresa dela e do professor na sala, os alunos não tem perguntas sobre o programa, mas sim sobre ela. Por que ela fala daquele jeito, por que o cabelo é estranho ou se ela é solteira são algumas das perguntas alternadas entre a pura curiosidade e a provocação dos alunos. E Issa responde assim:

Fosse descontextualizada, a fala seria completamente forçada deixando explícita a intenção de caracterizar o personagem de forma rápida e direta.

Outro bom exemplo de caracterização direta pode ser encontrada também em um piloto, dessa vez da série britânica Happy Valley (BBC, 2014---).

O teaser do piloto começa com Catherine, uma policial britânica chegando para atender o caso de um homem encharcado em gasolina e que está em uma praça ameaçando atear fogo no próprio corpo. No rádio patrulha, a policial que acompanha Catherine é avisada que o negociador está preso no trânsito, mas que recomenda que elas conversem com o homem até a chegada do especialista. Catherine já está engajada em uma conversa franca com o homem em busca de conquistar sua atenção e confiança.

Seria possível criar uma cena para caracterizar o personagem indiretamente? Sim!! Seria possível criar uma cena, talvez com Catherine e sua irmã, onde todas essas informações fossem mais diluídas e estivessem dramatizadas, não apenas contadas pela própria personagem. Mas seria tão eficiente? Essa abertura de Happy Valley tem aproximadamente 2 minutos e 50 segundos e nela conhecemos a profissão da personagem, sua idade, seu estado civil, seus conflitos familiares. De forma indireta ainda sabemos sua profissão e conhecemos seu método de trabalho, seguro, honesto e direto. Então, observe que a escolha aqui é por impacto e objetividade, o que o autor busca é que você conheça a personagem o quanto antes para então entrar em sua história.

Nos dois casos, apesar da grande quantidade de informações/características dadas pelas próprias personagens, elas não compõe sua caracterização completa, apenas parte dela. Issa e Catherine são muito mais complexas do que as características introduzidas e continuaram a ser caracterizadas ao longo dos episódios. A intenção em ambos os casos é dar informações suficientes para que o público entre na história conhecendo o personagem, mas ainda deixando espaço a curiosidade e o desenvolvimento do personagem.

“A caracterização de uma personagem não pode ser feita de uma vez: é necessário “arejar” a exposição de todos os detalhes que a constituem ao longo de um determinado tempo, às vezes todo o tempo do roteiro. Aliás, esse “arejamento” pode ser usado num sentido dramático, por exemplo reservando-se surpresas sobre a profissão do personagem, sobre aspectos de sua vida privada ou familiar, etc. Em compensação, o traço essencial da personagem, aquele que lhe confere sua função na história, merece ser apresentado logo, desde a sua primeira aparição, nem que seja por alusão. Quando os traços importantes da personagem demoram demais para serem definidos, o espectador pode ter uma reação de indiferença em relação a essa personagem, vaga e mal esboçada. Do mesmo modo, não basta criar uma ideia vaga sobre as relações reais (de parentesco, sexuais) entre duas personagens: é preciso criar uma vontade de saber mais, de desvendar o mistério- e, se houver uma vontade de manter certa ambiguidade, é preciso organizar essa ambiguidade.”

- O roteiro de cinema, Michel Chion

Então utilizar a caracterização logo na introdução de um personagem em cena é recomendável, mas utilizar a caracterização direta para fazê-lo é um método para ser usado com parcimônia, coragem e estilo. Deve-se também levar em consideração que muitas vezes o próprio personagem não é plenamente conhecedor de sua caracterização, assim como Macabéa não sabia que era infeliz. Então pela ausência de um narrador onisciente, a caracterização direta no audiovisual fica um pouco limitada pela própria conscientização dos personagens.

Por isso a alternativa mais indicada é a caracterização indireta. A caracterização nos ajuda a ver sentido no comportamento de um personagem, assim como nos ajuda a entender o seu processo de pensamento. E nisso, a caracterização indireta é fundamental. Nela, no lugar de dizer que um personagem é feliz ou infeliz, o autor usa ações, a fala -tanto a escolha de palavras, quanto a maneira de falar-, aparência física, os maneirismos e interação com outros personagens para mostrar e deixar o público concluir quão infeliz ou feliz ele é. O famoso Show, Don’t Tell ( que se enquadra em outras formas de exposição também) .

Então na caracterização indireta, às vezes, também referida como implícita, eu pego uma característica do personagem que é importante para a trama e eu crio uma situação que demonstre esse traço de personalidade ou estado psicológico.

“Seu trabalho como um escritor é criar eventos de modo que o leitor possa experimentar emoções através das ações e diálogo do personagem, em vez de dizer ao leitor como ele se sente. Você cria opções que mostram o processo de pensamento de um personagem ao invés de ter um personagem lhe dizendo o que ele está pensando, o que seria um diálogo explícito. Por exemplo, em Taxi Driver, ao invés de nos dizer que Travis Bickle é um personagem psicótico alienado, o Paul Schrader nos mostra ele no espelho na cena "Você está falando comigo".

O truque, então, é mostrar o que você sabe sobre o seu personagem e que seja importante para a história. Muitos roteiristas profissionais usam o "Truque das Duas Colunas". Em uma folha de papel, eles desenham duas colunas. Uma coluna é rotulada "O que eu sei sobre o meu personagem", onde lista todas as características principais do personagem. A segunda coluna é "Como vou mostrá-la em uma cena", onde eles dramatizam esses traços. Este é o lugar onde o processo criativo toma conta, com como os escritores fazem demonstrações originais do personagem. Por exemplo, na coluna 1 eles podem escrever, "Econômico", e na coluna dois, "Ele lava pratos descartáveis e redobra ​​guardanapos de papel utilizados." Aqui, suas ações revelam sua frugalidade. As ações são a forma mais comum de os roteiristas mostrarem um personagem, mas não é a única.”

- Writing for Emotional Impact, Karl Iglesias

Dentro disso, tomemos como exemplo, o episódio Versão de Testes da terceira temporada da série Black Mirror (Netflix, 2016). Nele, um jovem destemido participa de um teste da versão beta do jogo de terror de sobrevivência mais pessoal já feito. Os dez primeiros minutos são excelentes na caracterização indireta do personagem. Primeiro, vemos ele saindo de uma casa na madrugada com seu passaporte, ainda no taxi ele rejeita a ligação de sua mãe. Na cena seguinte ele está em um avião, jogando no celular. O avião passa por uma turbulência. Todos estão apreensivos, mas ele olha para o lado e ao ver o medo no rosto de uma menininha, resolve animá-la. Diz que ela só precisa imaginar que é uma monta-russa. Ele faz uma turbulência de avião parecer divertida. Assim, três características fundamentais do personagem são apresentadas de forma indireta logo na introdução da história: ele, por algum motivo que ainda desconhecemos, está evitando a sua mãe, ele é um gamer ou pelo menos está habituado ao mundo dos games e ele é destemido. O traço da falta de medo é o mais fundamental para essa história. Ele precisa ser caracterizado como destemido para ingressar nesse universo, porque a premissa trabalha justamente com o enfrentamento dos medos. Então, precisamos vê-lo como alguém destemido para que a revelação de seus medos se mostre mais profunda e psicológica. Afinal, o que teme alguém que não teme os perigos do mundo?

Outro caso para estudo de caracterização indireta pode ser encontrado na série britânica Broadchurch (ITV, 2013---) e em sua versão americana Gracepoint (Fox, 2014).

Em Broadchurch, quando somos apresentados à personagem Ellie Miller, ela está retornando de férias e trouxe um presente para cada um de seus colegas da delegacia. Cada presente é dado indicando porque ela o escolheu para aquela pessoa, mostrando que ela se importa com os colegas e sua dedicação em manter um relacionamento além do profissional. Quando o detetive Alec chega da capital para assumir a vaga a que Ellie seria promovida, ele chega quieto, indiferente e distante. O contraste entre os dois personagens funciona bem pela caracterização da personagem de Elie e logo de cara é possível sentir que essas personalidades tão diferentes e com visões tão diferentes irão ver o mesmo caso com olhares distintos e isso pode ser um conflito.

Na versão americana, adaptada pelo próprio criador Chris Chibnall, a cena do retorno de Ellie ao trabalho não traz a caracterização de Ellie como doce e amigável, por isso a chegada do novo detetive frio e indiferente não trás nenhum contraste imediato entre ambos, fazendo com que o mal estar no relacionamento deles seja entendido meramente como fruto da promoção que Ellie perde.

A escolha ocasiona a perda de uma das dinâmicas mais interessantes da série britânica. Obviamente, a mudança também é ocasionada pela mudança no tom da personagem, já que no audiovisual temos uma camada a mais de caracterização em relação a literatura que é a interpretação do ator, mas com o mesmo personagem central (e ator), o mesmo roteirista e o mesmo diretor da série britânica, as críticas da versão americana recaíram sobre Ana Gun (que faz Ellie Miller na versão americana). A verdade é que ao se fazer uma nova caracterização para a personagem, a personagem foi conceitualmente alterada e não era mais a mesma. A Ellie Miller esperançosa, amigável e com forte senso de comunidade, deu lugar a uma Ellie Miller mais pesada, seca e desesperançosa e essa mudança diminui muito do impacto dessa história.

Em um texto futuro, falaremos sobre outro aspecto da caracterização, a escolha da tipificação do personagem.

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