Nós sempre recebemos dúvidas pelo email e pelo facebook, mas dias desses recebemos uma pergunta tão interessante que decidimos tornar a resposta um post.
"Tenho procurado matérias ou artigos sobre a estrutura narrativa para curta-metragem de ficção. Como o tempo do curta-metragem é limitado, me parece não ser muito efetivo utilizar a jornada do herói, promessa da virgem e etc. Inclusive a estrutura de 3 atos parece não se encaixar também. (Como exercício criei um roteiro para um curta-metragem de 15 minutos utilizando a estrutura de 3 atos, e com todos os 12 passos da jornada do herói. Com a limitação do tempo (15 minutos), a historia ficou muito confusa). Acho que não dá para tratar um curta-metragem simplesmente como um um "mini longa-metragem" condensando toda a história. Vocês poderiam me dar um exemplo de estrutura narrativa efetiva para a criação de um roteiro de curta metragem? Onde é mais comum localizar o ponto de virada (ou os pontos) e etc." - Jonas S.
Julio Cortázar comparava escrever ao boxe. Em uma citação famosa dizia que se o romance vencia o leitor por pontos, o conto deveria vencer por nocaute. Podemos fazer uma comparação similar ao compararmos o curta-metragem ao longa. Enquanto longa-metragem tem duração suficiente para desenvolver aprofundadamente uma história, o curta-metragem precisa utilizar a limitação temporal, algo que o caracteriza, em favor de sua história. É preciso pensar na melhor forma de contar a sua história de forma simples, rápida, inesperada e impactante, como um nocaute.
No Brasil, conforme a Medida Provisória n° 2.228-1 de 6 de Setembro de 2011, considera-se um curta-metragem uma obra de até 15 minutos de duração:
IX - obra cinematográfica ou videofonográfica de longa metragem: aquela cuja duração é superior a setenta minutos;
VIII - obra cinematográfica ou videofonográfica de média metragem: aquela cuja duração é superior a quinze minutos e igual ou inferior a setenta minutos;
VII - obra cinematográfica ou videofonográfica de curta metragem: aquela cuja duração é igual ou inferior a quinze minutos;
Entretanto, diversos festivais nacionais trabalham com a aceitação de filmes de até 20 minutos como curtas-metragens. No restante do mundo, na ausência da concepção do média- metragem, os curtas-metragens podem ser mais longos. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, por exemplo, considera como curta-metragem qualquer produção de até 40 minutos.
É limitador conceber o curta-metragem como uma preparação para o mundo dos longas-metragens, um teste ou treino para se ser “promovido” à longa-metragens. O curta-metragem não é um longa-metragem reduzido.
Apesar do baixo peso comercial do curta-metragem (o que o torna um espaço receptivo a experimentação), e uma produção menos complexa do que um longa (o que acaba por atrair os mais jovens e com menos acesso a verbas), o curta é um campo próprio, com suas próprias características e oportunidades narrativas.
Se já comentamos aqui das especificidades de cada gênero e formato, também devemos ter em mente a necessidade de um novo entendimento de narrativa para escrita de curtas-metragens. Nem sempre a mera transposição de uma estrutura cabível no longa-metragem será eficiente no curta.
Por isso é preciso ter em mente que ao contrário da forma com que muitos tratam do curta-metragem, o curta não é gênero, nem formato, é sim uma construção narrativa através de um tempo reduzido. Assim não existe apenas uma estrutura possível para todos os curta-metragens.
DESIGN CLÁSSICO
Dramaticamente, os curtas-metragens podem conter a mesma estrutura de três atos com uma apresentação, conflito / ação principal/desenvolvimento e conclusão.
Esses curtas tem mais um aspecto de um pequeno longa-metragem, são estruturados com Design Clássico, possuem uma Apresentação, um Incidente Incitante, um Midpoint, um clímax e uma resolução. Podem ter outros Pontos de Virada (I e II) no final do primeiro e segundo ato, mas estes casos são raros. No entanto apesar da construção similar ao longa-metragem, o número de beats da história será muito inferior.
SLR
Irlanda, 2013
Um homem viciado em conteúdo voyeur de mulheres jovens (Apresentação) , vê fotos de sua filha adolescente no fórum que frequenta ( Incidente Incitante) e decide ir atrás do fotografo voyeur que a fotografou e não quer tirar as fotos do ar (Midpoint). Enquanto ela passeia no parque, ele persegue o fotografo, quebra sua câmera e fica com o cartão de memória com as novas fotos de sua filha (Clímax). Em casa, ele queima o hd com todos os conteúdos que salvava do site. Sua filha acha o cartão de memória, mas ela não vê o que tem no cartão distraída, enquanto stalkeia nas redes sociais uma menina que namora o seu ex. (Resolução).
L
Brasil, 2011
Teté odeia seus pés e sofre bulling no clube de natação de que participa, sendo chamada de L e garça (Apresentação). Hector começa a participar da aulas de natação, e também é ironizado por conta de seu cabelo (Incidente Incitante). Eles se aproximam e ficam amigos. Hector e Teté medem os seus pés. O de Teté é bem maior, ela diz que queria cortar seus dedos fora (Midpoint). Hector apresenta-a para sua avó, que fala sobre como eram tratados os pés das mulheres no oriente , para que ficassem pequenos. Teté resolve que vai fazer o mesmo em seu pé. Ela tenta raspar a cabeça de Hector, mas o machuca. Pede para que ele jogue um pedra sobre seus pés. O pai de Teté aparece pouco antes e grita tentando impedi-los(Clímax). Hector vai visitá-la de cabelo raspado. Ela passa a mão em sua cabeça, enquanto ele desenha em seu gesso. Eles deitam e encostam os pés um no outro, no gesso de Teté, o desenho de uma garça. Eles andam de bicicleta, Teté leva Hector na garupa, ele está cabeludo novamente. (Resolução)
Strangers
Israel, 2003
Um judeu e um palestino estão no mesmo metrô. Eles não se conhecem, mas se reconhecem. O palestino lê um jornal palestino e o judeu tira sua corrente com a estrela de David de dentro da camisa, quase como uma provocação. ( Apresentação) Um grupo de skin heads se aproxima e se senta entre eles. ( Incidente Incitante). O homem judeu esconde sua estrela de Davi. Eles picham o jornal do palestino e encaram longamente, de forma ameaçadora. O celular do homem judeu toca e o toque do celular é uma música tradicional judaica, "Hava Nagila", o que desperta a ira dos skin heads (Midpoint). Os dois homens se levantam e saem correndo pelo metro, seguidos pelos skin heads (Climax). Os dois escapam, saindo cada um por um porta do metro. Em lados opostos da plataforma, trocam as mochilas e um sorriso de cumplicidade (Resolução).
DOIS ATOS
Muitos teóricos insistem em afirmar que todo curta deve seguir a construção de três atos, mas se observamos os curtas mais relevantes dos últimos anos, veremos que nem todos se adequam a isso. Uma estrutura de dois atos também é possível e muito popular nos curtas, com apenas dois plot twists, muitas vezes um no começo como um Incidente Incitante e outro ao final como uma reviravolta da trama.
Hiyab
Espanha, 2005
Fatima é nova na escola e a professora não quer que ela entre na sala de aula com seu Hiyab, em nome da laicidade, do “bem-estar” de Fatima e da igualdade de todos, que acaba por tirar o Hiyab (Incidente Incitante). Fatima entra em sala e vários alunos estão com bandanas, bonés, tocas, faixas na cabeça. (Reviravolta Final).
Outra possiblidade da estrutura de Dois Atos é trabalhar mais próximo à estrutura básica da piada com um Set Up ( estabelecimento da premissa) e uma Punchline ( uma reviravolta inesperada ou cômica que encerra a premissa) . Construção dramática igual a anterior, mas que funciona muito para curtas-metragens bem curtos e cômicos.
Naturlige briller
Noruega, 2001
Janela Aberta
Brasil, 2002
ESTRUTURAS ARQUETÍPICAS
Alguns curtas trabalham com estruturas mitológicas como A Jornada do Herói e A Promessa da Virgem. Muitas vezes são usadas uma versão reduzida, onde algumas etapas são puladas ou são diminuídas a pequena ação, fala ou gesto.
6 dicas para ser o melhor jogador de futebol do mundo
Dinamarca, 2009
“6 dicas para ser o melhor jogador de futebol do mundo” utiliza a Promessa da Virgem para contar a história de uma menina que quer jogar futebol. Ela vive em uma ambiente machista que acredita que futebol é “coisa de homem” (Mundo Dependente). Ela treina escondida (Preço da Conformidade) com um amigo e quando disputa uma partida com um grupo de garotos, é abordada por um treinador que seleciona crianças para um torneio de futebol (Oportunidade de Brilhar). Em contramão a estrutura comum da Premissa da Virgem, ela Veste o Papel, em uma festa tradicional com vestido e tudo, mas não aquele que ela quer vestir e sim o que a comunidade lhe impõe. Ela joga o teste, ainda com o vestido ( Mundo Secreto) e volta para a festa com sua roupa rasgada (Pega Brilhando). O olheiro vai até a festa e diz para seu pai que ela é boa jogadora e deve treinar no time. A família fica em choque ( reino em Caos). Seu amigo diz que ela será o novo Kaka. Ela nega, diz que será a nova Marta (decide Brilhar sua Luz.) Ela e o pai assistem Marta sendo premiada melhor Jogadora do Mundo. Sam treina futebol com o apoio do pai. ( O reino brilha mais Forte).
Cristopher Vogler em seu blog diz que a Jornada do Herói também pode ser utilizada em curtas-metragens e sugere uma versão mais enxuta que funcionaria adequadamente em um curta-metragem:
“Encontrar o Mentor, novamente, é útil, mas não é necessário. Pode ser implicado pelo sistema de crenças do herói, indicado com um olhar para algum talismã ou objeto simbólico que sugere a fonte de inspiração do herói, ou pode ser deixado de lado completamente. Atravessar o Limiar é bastante importante, sinalizando que o herói está agora comprometido com a aventura. Mas em uma versão realmente comprimida, você pode simplesmente pular este passo e os próximos dois (Testes / Aliados / Inimigos e Aproximação da Caverna Oculta), e cortar diretamente para a Provação. Como em todas as etapas, há uma forma rápida e curta de representar esse movimento - o herói simplesmente atravessa uma ponte, sobe um lance de degraus, entra em uma nova sala. Testes, Aliados, Inimigos permite que o herói e a audiência se maravilhem com o novo mundo e construa conexões pessoais. Na forma curta, o herói pode simplesmente olhar para as maravilhas do novo mundo e passar diretamente para o calvário.”
Ele sugere uma estrutura mínima, na qual seria essencial pelos menos as seguintes etapas:
1. um Mundo Comum implícito,
2. uma eficiente Chamada a Aventura,
3. um Cruzamento do Limiar distinto,
4. uma provação de Morte e Renascimento (ou Ressurreição) e
5. uma Recompensa (ou retorno com o elixir).
A Pixar trabalha muito com essa versão reduzida da Jornada do Herói em seus curtas, por vezes, até com mais etapas. É o caso do curta, ganhador do Oscar de melhor curta animado deste ano, Piper.
Nele um pequeno passarinho em seu ninho ( Mundo comum) é chamado por sua mãe passarinho para ir caçar mariscos na beira-mar ( Chamado a Aventura). Ele vai até as ondas pegar um marisco (Travessia do Primeiro Limiar) e é levado pela onda (Testes / Aliados / Inimigos). Ela tenta novamente, mas corre de medo da onda e acaba por encontrar um caramujo que lhe ensina uma técnica de se abaixar e olhar por baixo da onda para conseguir visualizar onde os mariscos estão enterrados(Testes / Aliados / Inimigos). Quando a onda vem, ele e o camarujo se abaixam e ele consegue ver os mariscos ( Provação Suprema). Piper agora pega os mariscos sem dificuldades e leva grandes conchas para os outros passarinhos de seu bando. ( Recompensa/Retorna com elixir).
UMA SITUAÇÃO
Uma das possibilidades mais interessantes do curta-metragem é a capacidade de explorar um único evento de forma mais aprofundada. Apenas uma sequência com um uma situação desenvolvida até seu limite. Muitas vezes essa opção inclui a utilização de uma das estruturas anteriores, mas difere-se pelo uso de um número de cenas apenas uma ou duas cenas para :
Thunder Road
Estados Unidos , 2016
Thunder Road, ganhador do Festival de Sundance deste ano é um ótimo exemplo. A mãe do policial Arnaud acaba de falecer. Durante o velório alguém pede que ele fale. Ele lembra de situações do passado, fala sobre a paixão dela por dança, e da primeira vez que ela escutou Bruce Springsteen.
MINIMALISTA
Outros curtas ainda trabalham com uma estrutura de não- conflito ( não confundir com a não-narrativa ou sem trama), com apenas um plot twist. Existe uma apresentação, um desenvolvimento, uma reviravolta/peripécia e uma resolução. Não existe um incidente incitante como estopim para a história, a apresentação meramente estabelece uma situação ou personagem; Também não existem turning points no desenvolvimento, toda a história se segue por uma lógica não-causal. O desenvolvimento mostra situações novas ( ou uma situação) que aprofunda a visão anterior e só então, quase ao final, existe um Plot Twist que reverte o caminho para onde a história seguia.
It Eats You Up
Estados Unidos , 2016
Apesar do número reduzido de beats e de uma estrutura minimalista, os quatro minutos de It Eats You Up são pulsantes. Uma protagonista passiva, com um conflito interno, um monologo revelador e um final aberto, tudo tecido de forma a realçar a dramaticidade de cada um dos pequenos elementos presentes no curta.
E voltando ao conto, lembre-se que o menor conto do mundo é de Hemingway:
“Vende-se: sapatos de bebê, nunca usados”.
Veja quanta informação é possível passar com pouca palavras. Veja como a escassez de palavras é planejada para criar uma lacuna preenchida pelo leitor. Hemingway cede apenas as informações estritamente necessárias para que você entenda o contexto. É a imaginação do leitor que preenche as possibilidades de quem são esses vendedores/pais, quem seria a criança, como os pais perderam seu filho, a dor que eles sentem, o vazio. E isso é tão tocante quanto uma construção prolixa. Encontrar esse equilíbrio entre a quantidade de informação que você dará em pouco tempo, o subtexto e quais imagens você deixará que o público crie sozinho nas lacunas da sua história exige domínio da técnica, treino e sensibilidade.
O curta -metragem é sem dúvida, o espaço mais aberto a experimentação do audiovisual, mas não é fácil. Então, não tem resposta certa. Cada autor decide a melhor estrutura para sua história. E a própria estrutura muda a história e a abordagem. Isso é narrativa, descobrir e optar como ordenar situações de forma que elas se transformem na sua história. Em um curta, assim como em um longa-metragem, é a história, o estilo do autor, o gênero que solicitam uma estrutura específica. Isso porque ainda podemos pensar em curtas não-narrativos, poéticos, metafóricos, que trabalham ainda mais soltos, se importando mais com os sentimentos e emoções transmitidas do que com uma estrutura dramática.