Seven: Um protagonista que vivencia a história e um personagem principal que define o ponto de vista da história
Enquanto na literatura é muito claro que o foco narrativo e o ponto de vista de uma história é de seu narrador, em cinema quem narra? Quem estuda linguagem de cinema, sabe que quem narra é a câmera. Por isso não é difícil que ao se falar em ponto de vista em cinema, logo ouçamos falar de câmera subjetiva ou de POV ( point of view), mas o Ponto de Vista no cinema é uma construção narrativa que se inicia no roteiro. Mais precisamente, o ponto de vista da sua história nasce com o seu protagonista e o seu personagem principal.
"Podemos considerar que uma história cinematográfica é narrada do ponto de vista de uma personagem particular quando ela está presente, como participante ou testemunha, na maioria das cenas que compõem o filme e quando não nos é dado ver e saber muito mais ( e nem muito menos) do que ela. O fato de entrarmos na “intimidade” da personagem, assistido a cenas em que ela está só, vendo e ouvindo o que ele vê e ouve ( por exemplo, quando está no telefone ), contribui para reforçar nossa identificação ou, pelo menos, nossa impressão de compartilhar seu ponto de vista. O roteirista as vezes deve decidir de antemão de que ponto de vista sua história vai ser contada, isto é, através de que forma de identificação, com qual personagem e com que modo de narração ela vai funcionar. O ponto de vista escolhido determina não só os eixos emocionais da narrativa ( de acordo com esse ponto de vista, uma mesma cena pode ser dramática, engraçada ou vista friamente), mas também sua linha dramática."
-Michel Chion, O roteiro de Cinema
Porque narrativamente existe um personagem que dá o ponto de vista da história. Às vezes, ele faz isso em blocos pequenos, como apenas em algumas cenas. Às vezes, ele faz isso em um filme todo. Às vezes, nós escutamos sua voz narrando em Voice Over, mas às vezes não e mesmo assim a história está sendo contada sobre o seu ponto de vista. E necessariamente, esse personagem não é o seu protagonista. Mas para entendermos melhor a questão, precisamos saber quem é o protagonista.
Protagonista
O termo protagonista é usado desde o teatro da Grécia Antiga para significar o personagem que fez a primeira aparição no palco e tem ponto focal da história. O protagonista é o personagem com o maior objetivo/conflito/obstáculo no seu roteiro. A sua história, a sua jornada e o seu processo de transformação (ou não) são a estrutura principal de toda a trama. O protagonista comumente trás consigo o ponto de vista da história.
O protagonista, por si só não possui qualquer valor associado a si, ele pode ser bom ou ruim, moral ou imoral. Karl Iglesias em seu livro "Writing for Emotional Impact" divide o protagonista em quatro tipos possíveis, de acordo com os efeitos emocionais que eles despertam no público.
O Herói
Moralmente superior ao leitor. Produz admiração, nós não nos identificamos com eles, nós fantasiamos sobre eles. Eles nos dão uma amostra de quem realmente poderíamos ser. O arquétipo do herói contemporâneo descende da tragédia grega, onde este era um semideus, filho de um deus e um mortal e trazia em si a ambiguidade de possuir limitações humanas ao mesmo tempo que carrega virtudes que o homem comum não possui. O herói é envolto pelo moral e pela ética, é moldado por seus ideais, sempre nobres e altruístas, sendo assim uma personificação do bem. O Herói está disposto a se sacrificar para alcançar seu objetivo em nome do bem maior.
Exemplos: Jogos Vorazes, Harry Potter, Coração Valente, Lincoln, Milk, Quem quer ser um milionário, Valente, Hotel Ruanda.
Average Joe / Cara Normal
É igual ao leitor. Isso resulta em simpatia, existe um processo de auto-reconhecimento através do personagem, e assim o público se identifica com ele, seus desejos e suas necessidades. Esses personagens lutam para superar suas dúvidas e obstáculos, apesar das limitações.
Exemplos incluem Quanto mais Quente Melhor, Se meu apartamento Falasse, Todo Mundo quase Morto, Caça-Fantasmas, Scott Pilgrim, Um Homem Sério, etc.
Underdog / Vira-lata
É inferior ao leitor, não moralmente, mas porque ele é um herói improvável, todas as probabilidades estão contra ele. Ele é superado por forças antagônicas e oprimido por elas. Então, estamos inclinados a protegê-los, ajudá-los ou consolá-los conforme a história avança. O Underdog é um protagonista atraente, porque ele nos faz sentir três emoções - compaixão por sua falta de auto-estima ou recursos para ser bem sucedido, incluindo quaisquer deficiências físicas, emocionais, sociais, etc; Admiração por sua determinação de triunfar sobre os obstáculos e assumir o controle sobre suas vidas; E suspense para a plausibilidade de que se eles terão sucesso, mesmo contra todas as probabilidades? E se sim, como?
Exemplos incluem Rocky, Forrest Gump, Arizona Nunca Mais, Rebeldia Indomável, O Homem Elefante, Rambo, etc.
Lost Soul - Alma Perdida ou Anti-Herói
É um personagem que é o oposto do leitor - o personagem que toma uma direção errada, que desce pelo caminho errado. Ele é moralmente conflituoso e representa o lado mais sombrio da natureza humana. Este personagem evoca fascínio já que estamos intrigados pelo seu lado sombrio, admiramos sua coragem de ser mau e desafiar a moral estabelecida. Eles não despertam empatia naturalmente, portanto, para formar o vínculo, o leitor deve compreendê-los e admirar algo sobre eles - sua inteligência, seus motivos, sua falta de opções ou até mesmo um valor positivo raro, como a lealdade à família (The Godfather) ou paixão (Amadeus).
Exemplos de personagens Lost Soul incluem: Taxi Driver, O Lobo de Wall Street, Cidadão Kane, Psicopata Americano, Scarface, Um Estranho no Ninho, etc.
O Personagem Principal
“Quando contamos uma história, naturalmente adotamos algum ponto de vista, e, inclusive, variamos os pontos de vista ao longo da narrativa. Apesar disso, é comum nos roteiristas iniciantes a adoção irrefletida do ponto de vista do protagonista. Essa pode até ser a melhor opção num caso determinado, mas é preciso manter sempre em mente que não há qualquer necessidade dela. E não precisamos lançar mão de exemplos manifesto, como Cidadão Kane ou Rashomon (Akira Kurosawa, 1950) – que têm seu centro na relatividade da história em função do ponto de vista adotado – para tomarmos consciência da importância do foco narrativo”
- Manual do Roteiro: ou Manuel, o primo pobre dos manuais de cinema e TV, de Leandro Saraiva e Newton Cannito
Geralmente, a história é contada sobre o ponto de vista do protagonista, porém isso não é imperativo. Assim como na literatura, onde você pode ter um protagonista desassociado do ponto de vista narrativo, ou foco narrativo na literatura, isso também pode acontecer no cinema, porém com as peculiaridades da linguagem cinematográfica, isso não é tão óbvio. A história se desenrola através dos olhos dos Personagens Principais. Eles conduzem a trama através de seu ponto de vista. Enquanto o protagonista experimenta a história, o Personagem Principal vê e conta a história. Se em Um Estudo em Vermelho temos como protagonista Sherlock Holmes, mas como narrador temos Watson, em Tropa de Elite, por exemplo, o protagonista é Matias, enquanto o ponto de vista narrativo é dado pelo Capitão Nascimento. A trama central do filme aborda o processo de desumanização do treinamento policial e como um jovem idealista (Matias) que entra na corporação cheio de conceitos e esperança sobre a justiça e acaba por se corromper, terminando fazendo “justiça” com as próprias mãos com a legitimação da própria corporação que defendia. Outro exemplo contemporâneo dessa distinção é Mad Max Fury Road, sendo Furiosa a protagonista da história, mas tendo como ponto de vista o personagem de Mad Max, o personagem Principal. Ou em Sexto Sentido, onde Shyamalan brinca tanto com o ponto de vista, que cria um personagem Malcolm Crowe (Bruce Willis) que impõe seu olhar sobre a história selecionando o que melhor lhe cabe, enquanto o protagonista Cole Sear (Haley Joel Osment) enfrenta os conflitos de ser uma criança com habilidades mediúnicas. Capitão Nascimento não só está lá para mostrar a história desse jovem sob seu ponto de vista ele também tem um objetivo, encontrar um substituto a sua altura. Mad Max não é mero observador da jornada de Furiosa, ele mesmo busca fugir daquele culto que o aprisionou e utilizou como bolsa de sangue. Malcolm Crowe também tem um arco, ajudar Cole, redimindo-se de um erro do passado e quebrando a corrente que levou a sua morte. Porém, nenhum deles é o agente do plot principal do filme, aquele que está diretamente ligado ao seu tema.
“O Narrador cujo ponto de vista está voltado para dentro dele mesmo narra principalmente a forma como ele percebe a estória – ou seja, narra principalmente o seu próprio ponto de vista”.
- Flávio de Campos em Roteiro de Cinema e Televisão. A arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória.
Então apesar de raro, o protagonista pode não ter a história contada sobre o seu próprio ponto de vista. Isso pode acontecer ao longo de todo o filme, ou apenas em uma cena ou outra, em que o Personagem Principal de uma sequência é alterado. Apesar da confusão em diversas literaturas sobre roteiro, a definição que nós mais gostamos para esse personagem que dá o ponto de vista, mas não é o protagonista, é a clara distinção utilizada por alguns teóricos, adotando para tal o termo Personagem Principal. Assim, pode-se entender que o Personagem Principal nem sempre é o Protagonista e que nem todo Protagonista é obrigatoriamente o Personagem Principal.
“Às vezes, um roteiro inclui um personagem que não é o Herói, mas que serve como olhos da platéia. Em Estrada para Perdição, a história é contada do ponto de vista do narrador, um adolescente que está acompanhando seu pai, o Herói do filme. Em a Escolha de Sofia, a Heroína é claramente Sofia, mas o jovem Stingo serve de ponto inicial de identificação para o público e fonte da verdade gradualmente revelada de Sofia. A vantagem deste dispositivo é criar a identificação imediata com o personagem mais familiar, e transferir então essa identificação ao “Herói” ao longo do filme.”
-Michael Hauge em Writing Screenplays That Sell
Ok, mas o que isso muda?
Tudo! O ponto de vista está diretamente ligado com a percepção do público e como ele se relacionará emocionalmente com a história. A técnica de separar o Protagonista do Personagem Principal pode servir vários propósitos como questionar moralmente as ações do Protagonista, criar ironia, selecionar a quantidade de informação que o público recebe, fazer com que os dois personagens se ajudem em suas próprias jornadas, ou simplesmente fazer com que o público se relacione já no início do filme com um personagem, que irá conhecer o herói/protagonista e de se certo modo irá fazer com que o público se relacione com o herói através dele. Os mestres, como Hitchcock, dominavam essa técnica como poucos, utilizando para criar suspense ou mesmo brincar com o público que torcia para um lado ou para outro a cada cena do filme. Michel Chion em seu livro O Roteiro de Cinema, assim descreve o uso da quantidade de informação para criar o ponto de vista em Intriga Internacional :
“A própria seleção da informação contribui muito para criar o ponto de vista da narrativa. Saber aproximadamente tanto quanto uma das personagens ( ora um pouco mais, ora um pouco menos) contribui para colocar o espectador no ponto de vista desta. E, curiosamente, as vezes nos colocamos mais ainda no ponto de vista quando temos uma pequena vantagem, virgula ou uma pequena desvantagem, em relação a ela quanto a um ponto importante ( por exemplo, a natureza do perigo que a ameaça). Assim, Intriga Internacional, de Hitchcock, com roteiro de Ernest Lehman, o ponto de vista é do herói representado por Cary Grant, um homem comum que alguns mal-entendidos lançam na aventura (ele é confundido com um agente do serviço de contraespionagem). Na maior parte do tempo, não sabemos nem mais nem menos do que ele sobre o que está lhe acontecendo e compartilhamos suas surpresas e perplexidades. Mas, depois de certo tempo, Hitchcock abandona esse ponto de vista por um instante para ficarmos sabendo, antes de Cary Grant, uma parte da verdade: Kaplan, o homem com o qual o confundem, não existe... Essa informação nos torna mais solidários com o herói, pois concretiza os perigos que pairam sobre ele. Mais tarde, ao contrário, no mesmo filme, Cary Grant entra em combinação com a loura Eva Marie Saint par fazer com que o vilão, James Manson, acredite que ela acaba de assassina-lo (Cary Grant), por vingança e despeito. Nesse momento, o espectador é colocado na posição de James Manson: não sabe da intenção de Cary Grant e deve acreditar que este foi de fato morto... para melhor ser surpreendido pelo golpe teatral de sua “ressureição”. O artificio dramático era, evidentemente, proporcionar ao mesmo tempo um choque e uma reversão (ele está morto- ele não está morto), daí a elipse na narração, do momento que as personagens combinam sua artimanha. "