Todo protagonista precisa mudar? Vic Mackey, um dos protagonistas da série policial The Shield.
Toda regra narrativa é reducionista (a afirmação que começa este post também). É uma tentativa de simplificar a complexidade. Para cada afirmação de “Todo Protagonista deve ter um Objetivo”, encontramos uma Laranja Mecânica e acreditamos se tratar de uma anomalia. Mas o fato é que a regra, em primeiro lugar, não é a verdade, é mera redução de um conjunto de variáveis nem boas, nem más. É a repetição dessa simplificação que lhe dá caráter dogmático, fazendo com que muitos não ultrapassem os limites que a cercam. O campo fora das regras não é exatamente proibido, mas é pantanoso. Poucos arriscam se embrenhar, pois o mundo ao redor está gritando: “Não vá, não é possível fazer um bom roteiro sem conflito...conflito...flito...ito”. E daí, por medo, não vamos. Ou vamos, mas na primeira dificuldade voltamos crentes de ser realmente impossível. “Só os gênios conseguem”- afirmamos tentando convencer a nós mesmos. Nos confortamos com uma resposta fácil e deixamos de lado os estudos que poderiam aprofundar nosso conhecimento e nos levar ao outro lado. É no conhecimento e só então na técnica que encontramos todas as múltiplas possibilidades que confrontam os dogmas e vão além do lugar comum. Um desses dogmas que todo mundo encontra em seus primeiros estudos de roteiro é que todo protagonista precisa mudar ou passar por uma transformação ao longo da história.
Uma das muitas variações que encontramos sobre a obrigatoriedade de mudança do protagonista: " um personagem começa como um cara, então coisas acontecem, ele faz uma merd@s muito loucas, que então mudam quem ele é, e assim ele se torna um cara diferente.Fim"
Blake Snyder no livro Save the Cat chega a afirmar que “Arc is a term that means ―the change that occurs to any character from the beginning, through the middle, and to the end of each character‘s journey.”/ Arco é um termo que significa- a mudança que ocorre com qualquer personagem desde o início, pelo meio e até o fim de sua jornada."
Não digo que a afirmação é errônea, mas sim que ela não é conclusiva. A Jornada do Herói influenciou muitos escritores que transformaram em regras, questões que lá são apresentadas dentro de um contexto específico. O Herói clássico muda, pois seu arquétipo é o do jovem em transformação. A Jornada do Herói se origina em rituais de passagem, por isso a obrigação da transformação, ela é ritualística. Mas se nem todo protagonista é um herói arquetípico, todo protagonista precisa mudar?
O famoso aforismo do filósofo grego Heráclito: “Panta Rhei”, algo como tudo muda ou tudo flui, sugere que não. Segundo Platão, para Heráclito ninguém poderia se banhar em um mesmo rio duas vezes. Um homem só pode pisar em um rio uma vez, já que o fluir das águas muda o rio. Mas tampouco a pessoa permanece a mesma. A mudança seria o fluxo natural e por natural entenda literalmente como regido pelas leis da natureza. O tempo passa, a água corre, as pessoas mudam. Tudo flui.
Porém, se a passagem do tempo não altera as coisas, isso já seria uma transformação. Afinal, se tudo muda, não mudar seria ir contra a ordem natural, o que de certa forma também é uma mudança, não do personagem, mas do fluxo natural ao qual estamos acostumados.
É o caso de Vic Mackey, protagonista da série policial The Shield. No piloto, Vic, um policial corrupto, mata um colega de sua equipe após descobrir que ele era um informante da corregedoria. Vic nunca se arrepende, nunca questiona sua escolha e se necessário a faria novamente. Não existe transformação ao longo das sete temporadas de The Shield. Vic não muda e é justamente essa a sua “punição” ao final da série, fazendo com que ele perca absolutamente tudo o que ama. Só que Vic é constantemente testado, confrontado com sua própria hipocrisia, colocado em situações que deveriam o mudar, mas não mudam. E, isso o torna fascinante. Tivessem os roteiristas caído no caminho comum, onde Vic alcançaria a redenção, sua história seria banal e o personagem não tão complexo. É uma escolha que não pode ser feita sempre, convenhamos, mas que pode ser feita.
Martin Mckfly em de Volta para o Futuro, protagonista sem transformação, mas cheio de aventuras.
Outra exceção que o dogma da transformação não abrange é a utilização de arcos exclusivamente físicos com foco Plot Driven. Seja James Bond (com exceção em alguns filmes da franquia), Indiana Jones ou Martin Mckfly. A história desses protagonistas, em geral, está tão focada na busca de um objetivo, um objeto de desejo ou na resolução de um conflito, que qualquer jornada interior é deixada de lado e filme após filme, eles terminam exatamente como começaram. De Volta para o Futuro é um exemplo maravilhoso, pois Martin Mcfly vê seu amigo ser morto, consegue voltar no tempo, conhecer seus pais jovens, ajuda-los a resolver seus problemas, viver durante alguns dias em outra década, quase deixar de existir, voltar para o futuro tendo mudado toda a sua família, mas ele continua exatamente o mesmo. Na realidade, a única mudança em sua vida ao final do primeiro filme, é que na nova versão do futuro, ele tem a sua sonhada pick up Toyota.
Podemos dizer que o formato Plot Driven não exige uma transformação do protagonista justamente por sua tendência ao concreto, ao palpável. Por outro lado, as comédias também não exigem que seu protagonista mudem, mas por outra questão. São as imperfeições do personagem que permitem que todo o potencial cômico seja alcançado, por isso mesmo passando por uma situação que lhe ensina uma lição sobre a vida, o personagem muda pouco ou nada, pois ele precisa continuar imperfeito. No cinema de comédia contemporâneo, quase sempre existe um subplot de jornada interior, mas se pensarmos em casos como Seinfeld, The It Crowd, Simpsons, ou a maior parte da gangue de It’s Always Sunny in Philadelphia, percebemos que a comédia também não tem a transformação como regra, a transformação ou não do protagonista é mera questão estilística do autor. O lema de Larry David “No hugging, no learning” (sem abraços, sem aprendizado) é levado a sério em Seinfeld, que termina suas nove temporadas com os personagens tendo o mesmo dialogo que abre a série. Sem transformação, poderíamos acrescentar.
Annalise oscila entre a força e a fragilidade, mas não há mudança, nós que somos apresentados a suas muitas facetas aos poucos.
Outra forma sutil de trabalhar a questão, é utilizar a revelação no lugar da transformação. Em obras seriadas, com frequência vemos facetas de personagens que ainda não conhecíamos. Isso não quer dizer que o personagem mudou, apenas que uma parte de sua personalidade que ainda não havia sido testada foi colocada à prova e exposta. Ótimo exemplo disso é a primeira temporada de How to Get away with Murder e como a protagonista Annalise Keating é desenvolvida. É o que vamos descobrindo sobre ela que faz com que vejamos o personagem com outros olhos ao longo da história. A estrutura em media res que começa em um ponto e avança e retrocede cronologicamente, ajuda a montar o quebra-cabeça que Annalise é. Somos nós que descobrimos que ela é instável, tão auto centrada quanto insegura, que por vezes distorce os próprios valores que afirma ter, desde que seja para se proteger. Annalise é assim. Não é ela que muda, somos nós.
Então não, nem todo protagonista precisa mudar. Mas não se engane, continuar o mesmo é mais difícil do que parece.