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“Que horas ela volta?” acabou de ser anunciado oficialmente como representante brasileiro ao Oscar e o feito é merecidíssimo. Como este é um espaço voltado ao estudo e a reflexão sobre o roteiro audiovisual, nós não vamos falar aqui sobre a qualidade da obra de Anna Muylaert, sobre a atuação primorosa de Regina Casé e de Camila Márdila , sobre a fantástica direção de arte (que por sinal, por si só é muito mais narrativa do que muitos roteiros atuais ), porque isso tudo você pode ler em diversos lugares por aí, ou melhor ainda, pode ir as salas de cinema para constatar. “Que horas ela volta?” é uma aula sobre vários aspectos da narrativa cinematográfica, então nada melhor do que falarmos sobre o seu roteiro e as belas lições dadas aos roteiristas.O texto abaixo contém spoilers.
1) A estrutura clássica não é uma fórmula
Primeiramente, a maior lição de “Que horas ela volta” dá ao cinema nacional contemporâneo é que o roteiro clássico não precisa ser óbvio. Não sabemos porque, mas parece existir uma eterna resistência por parte dos realizadores à histórias fechadas, ao uso de uma trama definida e personagens aprofundados. Por algum motivo, o "cineasta brasileiro padrão" parece acreditar que quanto mais "zumbizado" for seu protagonista, vagando de um ponto a outro ( da rua, não da história) de forma passiva e sem qualquer conflito, mais artístico será seu filme. O resultado é um cinema não raramente hermético e pedante. Por isso, não é de se estranhar que uma obra como “ Que horas ela volta?” venha de uma roteirista e diretora, que sabe justamente a importância de uma linha narrativa e tenha a sutileza necessária para trabalhar a estrutura clássica de forma minimalista, o suficiente para cativar os espectadores e deixar riquezas a serem acrescidas ao filme por outros departamentos. “Que horas ela volta?” é uma aula a todos os realizadores que negam ou negligenciam a importância de um bom roteiro.
2) O bom uso da simbologia
Foto: Página do Facebook "Que horas ela volta?"
Objetos, quando bem utilizados, são sempre importantes em histórias. Seja um colar raro, supostamente perdido após o naufrágio de um transatlântico, ou o trenó da infância pobre do multimilionário. Eles podem revelar o caráter de um personagem, podem ocasionar reviravoltas, podem revelar eventos. Um bom roteirista precisa saber criar valor para um objeto, de forma que ele se torne mais do que aquela simples peça, fazendo com que ele seja uma representação de algo ou tenha um caráter simbólico. Em “Que horas ela volta?” um dos objetos mais simbólicos é um simples jogo de xícaras descasadas. O jogo de xícaras, com bandeja e térmica, representa a relação de Val com seus patrões, o seu serviço, a sua dignidade. Ela é dada como presente a Bárbara, mas para ela é apenas um objeto barato, sem valor, que deve ser escondido. Para Val, ele é belo e moderno, digno de atenção, de cuidado. O final também não é por acaso, agora o jogo de xícaras terá uso e valor, afinal simboliza a própria trajetória de Val.
3) Drama não significa que o público não pode rir
Outro erro comum dos roteiristas iniciantes é acreditar que o gênero precise estar impresso em cada cena da obra. O gênero é apenas um sistema de códigos utilizados no design da sua história. Isso não quer dizer que você não possa ter uma cena cômica (ou várias cenas) em um drama ou ser comovente e emocionante em uma comédia. Em “Que horas ela volta?”, obviamente, a escolha de uma atriz com base e formação cômica ajudaram a dar leveza ao filme, mas trabalhar a alternância de tons, com certeza pode ajudar na criação de uma obra mais complexa.
4) Diálogos bem escritos x Diálogos expositivos
Outra grande lição que “Que horas ela volta?” nos ensina é a sutileza nos diálogos. Facilmente, o filme poderia cair no lugar comum, se optasse por utilizar diálogos expositivos. A opção pelo expositivo seria errada tanto narrativamente quanto socialmente. O preconceito velado não se manisfesta com a boca cheia e palavras diretas. Ele se apresenta pela escolha das palavras, pelo uso da ironia, pela ação do não ouvir o outro. Por isso tudo, os diálogos do filme são impecáveis. Destacamos o uso das palavras para ilustrar o descaso de Bárbara. Quando Val chega a cozinha e diz que sua filha já chegou e está na casa, a reação de Bárbara é dizer “Traz ela aqui...”. A escolha parece banal, mas não é. O verbo “Trazer” tem vários significados, mas observe como o usamos muito mais associado a um objeto inanimado ou a uma condição em que a pessoa não tem escolha e realmente é guiada/transportada até determinado local. Você raramente dirá a um adulto, referindo-se a outro adulto ( por mais que seja um jovem), que ele “traga a pessoa”. Você pedirá para que ele chame a pessoa, para que a pessoa venha até aqui, mas raramente para que alguém a traga. A escolha simples, já demonstra todo o descaso e a indiferença com alguém que ela nem conhece, mas não considera capaz ou digna de fazer suas próprias escolhas e ações. Tudo através do subtexto ou de escolhas precisas para a criação de um diálogo eficaz e enxuto, que revela muito com pouco.
Parabéns ao “Que horas ela volta?”, merecidamente indicado a representar o Brasil. Se você ainda não viu, assista, não só é uma aula para roteiristas, mas também um filme delicioso e necessário.