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Jaqueline M. Souza

Verdades e Mentiras sobre “saidebaixotização" da comédia na tv brasileira


Essa semana, um post do blog TelaTela, da revista Carta Capital, sobre a “Saidebaixotização” do humor brasileiro fez sucesso na internet. Como alguns estão desgostosos das atuais produções, reproduziram o texto como uma tese dos erros cometidos na tentativa de criar séries cômicas no Brasil. O texto é muito bom (se você não sabe de que texto, estamos falando, você pode acessá-lo aqui), mas acreditamos que ele deva ser usado de base para que possamos discutir mais profundamente as séries cômicas brasileiras. Outro ponto importante é que como roteiristas, nós discordamos de algumas questões apontadas, pois elas estão diretamente ligadas a conceitos narrativos e devem ser entendidas como ferramentas e não pesos para avaliar a qualidade das séries.

Então, levantamos algumas questões sobre o texto que gostaríamos de discutir:

1. Se bem utilizados os personagens não são estereótipos e sim arquétipos

Poucas pessoas estudam comédia e um número mais limitado ainda estuda o formato do sitcom (a comédia de situação). Por isso, é fácil analisarmos uma referência ruim e entendê-la como algo negativo do gênero. A verdade é que muitos personagens citados no texto são arquétipos clássicos do sitcom. O sitcom remonta a Comedia Dell'arte e assim, muitos de seus personagens são desdobramentos dos arquétipos lá encontrados. Por isso, também é comum encontrarmos a distinção de personagens entre os criados e os patrões. No sitcom, por exemplo, essa evolução do arquétipo cria um personagem que chamamos de Bitch/Bastard ou The Wisecracker, um personagem sarcástico, afiado, crítico com as situações, e que em geral de alguma forma se destaca do restante do grupo, justamente para dar um olhar de fora as situações. Assim, esse personagem é comumente associado a um empregado ou funcionário. Isso porque, tendo uma outra realidade, ele é o único capaz de ver os absurdos das situações e expor os outros personagens. Da mesma forma, esse arquétipo pode ser uma criança, em geral superdotada ou muito inteligente, que reafirma que os adultos não são tão espertos assim. A lógica e função do personagem dentro da história é a mesma, dar um olhar crítico as ações e situações dos personagens. Exemplos: a Berta em Two and a Half Men, a Carla em Cheers, Niles em The Nanny, a Edileuza em Sai de Baixo (no começo, antes de ela virar um saco de pancadas do Caco Antibes), a Alex e a Lily em Modern Family.

Esse vídeo do Cracked mostra bem que a presença constante dos arquétipos está em praticamente tudo que assistimos de sitcom na atualidade. Então, por que em alguns lugares eles funcionam e em outros não?

Então, precisamos entender que não é a mera utilização de um arquétipo que qualifica a obra, já que ele é apenas uma ferramenta narrativa. O problema aqui é a má utilização dos arquétipos, fazendo com que em vez de manterem sua função narrativa, eles sejam apenas uma reprodução de clichês e preconceitos.

2. O formato influencia na forma do humor

Nos Estados Unidos, existem duas possibilidades para a produção de um sitcom. A primeira é a que chamamos de Three Camera, na qual a série é filmada em estúdio, com a presença de uma plateia e uma faixa de riso para pontuar as gags. A segunda é o Single Camera, que é filmado como cinema e sem a faixa de risos. (O número de câmeras reais utilizadas na filmagem pouco importa, séries como Arrested Development eram filmadas com duas câmeras, mas se enquadram no formato Single Camera, por exemplo). Em breve, faremos um artigo sobre sitcom, e fica clara a distinção, até porque os dois métodos são formatados de formas diferentes. Além da formatação, qual a diferença para o roteirista? O tipo de humor. O formato Three Camera exige um humor menos sutil e diminui as possibilidades de qualquer humor que não seja em cena. Imagine Todo Mundo Odeia o Cris, em que metade das piadas são utilizações dos recursos de linguagem, como a narração ou a edição que permite saltos temporais. Agora imagine Todo Mundo Odeia o Chris no formato Three Camera. Seria outra série, e com certeza, trabalharia um outro estilo de humor. Agora, imagine no Brasil, onde as séries citadas pelo texto do TelaTela não são realizadas em um estúdio e sim em um teatro. O elenco não está atuando para a sutileza que câmera capta e sim para a plateia, da primeira a última fileira do teatro. Na realidade não estamos falando de um caso de uma sitcom com plateia e sim de uma peça de teatro filmada. Isso em si, não seria um problema, mas muito do humor gritado que temos hoje não seria necessário, em nenhum dos outros formatos.

Uma cena de Friends sem a faixa de risos. Observe que apenas a remoção do áudio de risos torna a cena estranha, desconfortável e com atuações exageradas. Isso porque no formato Three Camera, a plateia faz parte do show.

3. "Afinal, é disso que o povo gosta. "

O brasileiro gosta do escárnio. Essa é uma afirmação que vivemos a ouvir por aí, seja por roteiristas, por pesquisadores, etc. Então, como o brasileiro conseguiria rir de obras estrangeiras que não usam o escárnio como única ferramenta de humor? Como Friends, Chaves, Todo Mundo Odeia o Cris, fizeram sucesso com seu humor, sem essa necessidade de zombar e menosprezar o outro o tempo todo?

O escárnio é um tipo fácil de humor e por isso ele é amplamente utilizado no Brasil. Na ausência de um estudo mais aprofundado sobre o cômico, eu jogo um personagem em cena para ser zombado pelos outros personagens, me apoiando em preconceitos do público e consigo um riso fácil. Por que em 50 anos de comédias para TV, não evoluímos disso? Como dissemos, não é por ser a preferência do público e sim porque isso exige pouco ou nenhum estudo sobre todas as outras possibilidades de humor. Quando o Porta dos Fundos surgiu há alguns anos atrás, ele veio para mostrar que sim, o público brasileiro entende a comicidade por trás da ironia, da quebra de expectativa, da paródia, da sátira e tantos outros recursos da comédia.

Esquete do saudoso Tv Pirata que trabalha com a quebra de expectativa. Por que não explorar os muitos recursos cômicos nas obras seriadas?

4. “Num contexto assim, o tipo de humor só pode ser aquele que ri do oprimido.”

De novo chegamos à questão que o formato apresentado é tido como responsável pelo conteúdo, o que é uma mentira. O conteúdo de preconceito que lá se encontra não é resultante do formato e sim do discurso de quem o escreve. Vejamos séries como Will and Grace, Vicious e mesmo mais recentemente Unbreakable Kimmy Schmidt, todos tem personagens, com maior ou menor destaque, que fazem parte de grupos de minoria e eles não são menosprezados por isso, mesmo se enquadrando claramente entre os arquétipos do sitcom. Big Bang Theory, e antes dele The IT Crowd, leva isso ao pé da letra e transforma o Nerd, personagem usualmente utilizado como escada para o humor, em protagonista e o coloca na posição de quem domina a piada e não quem a sofre. A necessidade de rir do oprimido não é do contexto, na realidade, é justamente o contrário, os personagens oprimidos são quem devem rir do contexto, como demos o exemplo, do caso do arquétipo do Wisecracker.

Vicious é um bom exemplo, sobre as escolhas de como retratar personagens. Uma versão rasa, optaria por dar protagonismo ao jovem vizinho, e o colocar o casal de senhores, apenas como escada nas situações, entrando em cena, sofrendo uma piada preconceituosa e ainda soando como vizinhos folgados. Vicious dá a Freddie e Stuart, o protagonismo, e aproveita todo o sarcasmo dos personagens para quebrar estereotipos.

Conclusão

Concordamos em cheio com uma questão: falta sim, ambição por quem cria estes programas. O problema não é o formato e sim a falta de uma compreensão mais ampla sobre as possibilidades de humor e coragem de explorá-las no Brasil. Mesmo com todas as observações levantadas pelo texto do TelaTela, ainda seria possível fazer séries completamente diferentes, que explorassem nuances e estilos de humor diferentes. Para isso, seria preciso só que os personagens fossem mais profundos, enxergados com suas funções narrativas arquetípicas e não como reproduções de estereótipos e que o humor fosse alcançado através de uma gama maior de recursos cômicos do que apenas o escárnio ao diferente. Só. Mas como isso é difícil, é melhor colocar uma piada com pobre no meio, só pra garantir. (Plaquinha de Ironia)


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