O Herói e sua Jornada
Por Jaqueline M. Souza
No mundo contemporâneo é quase impossível estudar roteiro ou storytelling sem nunca ter ouvido falar da Jornada do Herói ou Monomito. Isso porque esta estrutura baseada na mitologia de diversas culturas e amplamente estudada pelo antropólogo Joseph Campbell foi muito popularizada em meados dos anos 80, pelo consultor e roteirista Christopher Vogler que escreveu um célebre memorando: Um Guia Prático para o Herói de Mil Faces, utilizando o trabalho de Campbell como método de estrutura narrativa para roteiros da Disney, onde trabalhava na época.
O memorando de Vogler ficou tão popular que acabou se transformando em um livro: A Jornada do Escritor. Esse livro é a base para toda a conceituação do que é difundido popularmente como "A Jornada do Herói". Enquanto o Monomito, o trabalho de Joseph Campbell, é um estudo mítico e antropológico sobre o que há de primitivo e de inconsciente coletivo nas histórias de heróis e mártires de diversas culturas ao longa de toda a história da humanidade; A Jornada do Escritor, o trabalho de Christopher Vogler, é um guia de como adequar uma versão compacta da estrutura apresentada por Campbell na escrita de roteiros. A diferença também se apresenta na quantidade de passos/etapas de cada herói enfrenta- para Campbell são 17 etapas enfrentadas e para Vogler são 12. Por isso, popularmente conhecidas como 12 passos da Jornada do Herói.
Quem é o Herói
Para Vogler, o Herói é alguém disposto a sacrificar suas necessidades em benefício dos outros. Características como força ou coragem são secundárias em relação a capacidade de sacrifício do herói. Ao se sacrificar ele se torna sagrado. Ele representa o Ego, a busca pela identidade e auto-aceitação. A jornada do herói se inicia com a separação de sua família, de sua comunidade ou de sua tribo. Para Vogler, somos todos heróis enfrentando guardiões e monstros internos, contando com a ajuda de aliados, encontrando professores, guias e demônios. E mesmo esses arquétipos são apenas emanações do próprio Herói, são facetas desconhecidas dele próprio e por isso ao final de sua jornada, ele completa seu processo de transformação e auto-conhecimento. Os heróis precisam ter qualidades com as quais possamos nos identificar e com as quais possamos nos reconhecer, por isso são impelidos por impulsos universais como o desejo de ser amado e compreendido, de ter êxito, de sobreviver, de ser livre, etc. Para Campbell, é um arquétipo em diversas culturas que descreve a transição da adolescência para a idade adulta, um ritual de passagem. Ele inclui, tipicamente, uma fase de separação, transição, e incorporação, sendo a segunda dessas, uma fase de transformação psicológica fundamental que deixa para trás a psique infantil. Assim, o herói retorna como adulto para enriquecer o mundo com suas descobertas. Os Heróis, portanto, são símbolos da alma em transformação, da jornada rumo ao crescimento e a aprendizagem.
“No fundo, apesar de sua infinita variedade, a história de um herói é sempre uma jornada. Um herói sai de seu ambiente seguro e comum para se aventurar em um mundo hostil e estranho. Pode ser uma jornada mesmo, uma viagem a um lugar real: um labirinto, floresta ou caverna, uma cidade estranha ou um país estrangeiro, um local novo que passa a ser a arena de seu conflito com o antagonista, com forças que o desafiam. Mas existem outras tantas histórias que levam o herói para uma jornada interior, uma jornada da mente, do coração ou do espírito. Em qualquer boa história, o herói cresce e se transforma, fazendo uma jornada de um modo de ser para outro: do desespero à esperança, da fraqueza à força, da tolice à sabedoria, do amor ao ódio, e vice-versa. Essas jornadas emocionais é que agarram uma plateia e fazem com que valha a pena acompanhar uma história.”
- Cristopher Vogler “A Jornada do Escritor”
“O herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com eloqüência, não da sociedade e da psique atuais,em estado de desintegração, mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno — aperfeiçoado, não específico e universal —, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como o declara Toynbee e como o indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu”
- Joseph Campbell “O Herói de Mil Faces”
17 Etapas do Monomito de Joseph Campbell
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Chamado à aventura
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Recusa do Chamado
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Ajuda Sobrenatural
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Travessia do Primeiro Limiar
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Barriga da baleia
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Estrada de Provas
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Encontro com a Deusa
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A Mulher como Tentação
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Sintonia com o Pai
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Apoteose
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A Grande Conquista
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Recusa do Retorno
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Voo Mágico
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Resgate Interior
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Travessia do Limiar
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Retorno
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Senhor de Dois Mundos
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Liberdade para Viver
12 Passos da Jornada do Herói por Cristopher Vogler
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Os heróis são apresentados no Mundo Comum, onde
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recebem O Chamado À Aventura.
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Primeiro, ficam relutantes ou Recusa o Chamado, mas
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num Encontro com o Mentor são encorajados a fazer a
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Travessia do Primeiro Limiar e entrar no Mundo Especial, onde
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encontram Testes, aliados e inimigos.
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Na Aproximação da Caverna Oculta, cruzam um Segundo Limiar,
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onde enfrentam a Provação.
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Ganham sua Recompensa e
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são perseguidos no Caminho de Volta ao Mundo Comum.
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Cruzam então o Terceiro Limiar, experimentam uma Ressurreição e são transformados pela experiência.
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Chega então o momento do Retorno com o Elixir, a bênção ou o tesouro que beneficia o Mundo Comum.
A Jornada Passo-a- Passo
Pela popularidade, tanto no uso cinematográfico, quanto nos estudos acerca storytelling, vamos nos focar nos passos da Jornada do Herói proposta por Vogler em A Jornada do Escritor.
Mundo Comum
“A maioria das histórias desloca o herói para fora de seu mundo ordinário, cotidiano, e o introduz em um Mundo Especial, novo e estranho. É a conhecida ideia de "peixe fora d'água", que gerou inúmeros filmes e espetáculos de TV (O fugitivo, A família Buscapé, A mulher faz o homem, Na corte do rei Arthur, O Mágico de Oz, A testemunha, 48 horas, Trocando as bolas, Um tira da pesada etc). Bom, mas se você vai mostrar alguém fora de seu ambiente costumeiro, primeiro vai ter que mostrá-lo nesse Mundo Comum, para poder criar um contraste nítido com o estranho mundo novo em que ele vai entrar.”
- Cristopher Vogler
Chamado à Aventura
“Apresenta-se ao herói um problema, um desafio, uma aventura a empreender. Uma vez confrontado com esse Chamado à Aventura, ele não pode mais permanecer indefinidamente no conforto de seu Mundo Comum. [...]O Chamado à Aventura estabelece o objetivo do jogo, e deixa claro qual é o objetivo do herói: conquistar o tesouro ou o amor, executar vingança ou obter justiça, realizar um sonho, enfrentar um desafio ou mudar uma vida."
- Cristopher Vogler
“Conforme entende o místico, ele marca aquilo a que se deu o nome de "o despertar do eu". No caso da princesa do conto de fadas, significou apenas o surgimento da adolescência. Mas, pequeno ou grande, e pouco importando o estágio ou grau da vida, o chamado sempre descerra as cortinas de um mistério de transfiguração — um ritual, ou momento de passagem espiritual que, quando completo, equivale a uma morte seguida de um nascimento. O horizonte familiar da vida foi ultrapassado; os velhos conceitos, ideais e padrões emocionais, já não são adequados; está próximo o momento da passagem por um limiar."
- Joseph Campbell
Recusa do Chamado (o Herói Relutante)
“Com frequência, o herói hesita logo antes de partir em sua aventura, Recusando o Chamado, ou exprimindo relutância. Afinal de contas, está enfrentando o maior dos medos — o terror do desconhecido. O herói ainda não se lançou de cabeça em sua jornada, e ainda pode estar pensando em recuar. É necessário que surja alguma outra influência para que vença essa encruzilhada do medo .”
- Cristopher Vogler
Mentor (a Velha ou o Velho Sábio)
"A relação entre Herói e Mentor é um dos temas mais comuns da mitologia, e um dos mais ricos em valor simbólico. Representa o vínculo entre pais e filhos, entre mestre e discípulo, médico e paciente, Deus e o ser humano. [...] A função do Mentor é preparar o herói para enfrentar o desconhecido. [...] Entretanto, o Mentor só pode ir até um certo ponto com o herói. Mais adiante, o herói deve ir sozinho ao encontro do desconhecido. E, algumas vezes, o Mentor tem que lhe dar um empurrão firme, para que a aventura possa seguir em frente."
- Cristopher Vogler
Travessia do Primeiro Limiar
“Finalmente, o herói se compromete com sua aventura e entra plenamente no Mundo Especial da história pela primeira vez — ao efetuar a Travessia do Primeiro Limiar. Dispõese a enfrentar as consequências de lidar com o problema ou o desafio apresentado pelo Chamado à Aventura. Este é o momento em que a história decola e a aventura realmente se inicia."
- Cristopher Vogler
“ Tendo as personificações do seu destino a ajudá-lo e a guiá-lo, o herói segue em sua aventura até chegar ao "guardião do limiar", na porta que leva à área da força ampliada. Esses defensores guardam o mundo nas quatro direções — assim como em cima e embaixo —, marcando os limites da esfera ou horizonte de vida presente do herói. Além desses limites estão as trevas, o desconhecido e o perigo, da mesma forma como, além do olhar paternal, há perigo para a criança e, além da proteção da sociedade, perigo para o membro da tribo.
- Joseph Campbell